Tereza 01/02/2022
A Promessa. A Pane
A promessa. Friedrich Durrenmatt.
O gênero policial é um dos que tratam do lado negro da mente humana, do crime e suas motivações às vezes obscuras. Trata também da racionalidade, do uso de métodos investigativos rigorosos para o desvendamento dos crimes.
O conto começa com um encontro entre um escritor de livros policiais e um delegado, após uma conferência proferida pelo primeiro e assistida pelo segundo. O delegado questiona o modelo dos romances policiais, que considera equivocado, por serem excessivamente racionalistas e não contemplarem o que realmente ocorre no mundo do crime, o papel do acaso, por exemplo.
Passa a relatar um caso que desfia o raciocínio linear presente em roteiros de livros policiais. Trata-se do assassinato de uma garota em uma pequena cidade suíça, encontrada na floresta por um caixeiro viajante. Este passa a ser acusado pelo crime e é considerado culpado pela população e pelos policiais que investigam o crime. O conto é inspirado ou dialoga com o conto infantil do Chapeuzinho Vermelho, com o qual tem algumas semelhanças: o vestido vermelho da garota, a ida a floresta para levar um bolo para a avó, o ataque na floresta.
Após o crime um dos policiais tido como exemplar e que estava de saída para outro país presencia os rituais investigativos de seus colegas e começa a se envolver no caso. Ele é instigado a agir no caso diante do sentimento de dor dos pais da menina, que pedem justiça, e do pedido de ajuda do caixeiro viajante que se disse inocente. Ele promete aos pais que o culpado será punido.
Este policial começa a agir movido pelo sentimento de justiça, que foi acionado pela demanda dos pais da garota morta e por não estar convencido da culpa do caixeiro viajante, considerando muito apressada a conclusão do caso, que foi encerrado com a confissão do caixeiro viajante, extraída por seus colegas mediante o uso de recursos intimidatórios e violentos. Ele questiona os métodos burocráticos que aparentemente “solucionavam” o crime e tranquilizavam a população e passa a investigar por conta própria.
O policial fica obcecada pelo desvendamento do crime e passa a rever as provas colhidas, a revisitar a família e a escola da menina, encontrando novos indícios do crime, que apontavam para outras direções. Usa também de sua intuição e de elementos simbólicos presentes na cena do crime e nos relatos, para chegar ao criminoso. Essa obsessão acaba por prejudicá-lo em sua carreira e no convívio com os colegas que passam a considerá-lo pessoa esquisita, até mesmo meio louca. Os novos indícios que encontra não são levados à sério, sendo às vezes ridicularizados pelos outros, mas o policial permanece em sua busca, fiel a promessa que fizera aos interessados e a si mesmo.
O caso só é desvendado tardiamente, mediante a confissão de uma idosa em seu leito de morte. Esta revelação demonstra o bom faro do policial que interpretara corretamente alguns dos indícios encontrados e que quase chega ao desvendamento do caso não fora um acontecimento fortuito, um acidente, que impossibilitou a presença do culpado, que morreu antes de outra tentativa de assassinato, desta vez planejada para atrair o assassino e capturá-lo. Assim, o policial não pode cumprir a promessa que fez à família da menina assassinada e a si mesmo, de capturar e punir o verdadeiro criminoso, ficando com sua vida destruída e sendo desacreditado pelos outros. Ao contrário do que acontece nos romances policiais, onde o crime é sempre desvendado por algum investigador habilidoso e cheio de qualidades e o acaso não comparece, neste caso, o crime não é desvendado, o assassino não é desmascarado nem preso.
Na literatura de Durrenmat os sujeitos são movidos por uma espécie de senso moral que em algum momento é despertado, mesmo diante da inconsciência que prevalece na maioria das pessoas ao redor. É o caso do investigador desse crime que afronta até mesmo as supostas evidências e rotinas do trabalho policial, e as próprias posições de poder já alcançadas, para seguir suas convicções e seu senso de dever com a verdade e com as pessoas afetadas.
O autor retrata ainda a hipocrisia e moralidade frouxa que famílias muito ricas às vezes adotam. Interesses mesquinhos e crimes são relativizados, mantidos em segredo e esquecidos em nome do “bom” nome da família.
A Pane:
Conto curto, mas muito bem elaborado, inicia-se discutindo literatura, o autor se pergunta o que cabe a ela falar, o que deve dizer; reflete sobre certa crise da literatura afirmando que “surge o pressentimento de que não há mais nada para narrar”; e, anunciando o desdobramento do conto, afirma que, diante de um mundo regido por máquinas resta a pane, o momento de suspensão do movimento, “quando é possível falar de justiça, julgamento e clemência mesmo captados pelo monóculo de um embriagado”; o conto de Durrenmatt se insere nessa temática, tratando dos acontecimentos em torno da pane de um automóvel moderno para a época, um Studbaker, e das ações e reflexões de seu condutor, um caixeiro viajante, que, devido a ela resolve pernoitar num pequeno vilarejo.
Ao procurar um alojamento, o representante comercial, Alfred Traps, toma conhecimento que todos os hotéis estão lotados, por conta de um evento na cidade, sendo orientado a procurar a casa de um morador que costuma receber hóspedes. Lá ele é acolhido pelo proprietário, que afirma não precisar pagar nada pela estadia e é convidado por ele para participar de um jantar que dará à noite para seus amigos.
Os convidados são anciãos aposentados, um juiz, um promotor, um advogado, um carrasco, que, para encontrar um sentido diante do tédio da aposentadoria resolvem encenar julgamentos e condenações com alguns de seus convidados, que desempenham o papel de réus. Os anciãos assumem os papeis que ocupavam antes da aposentadoria. Traps aceita participar, acha que vai ser uma brincadeira divertida, é afirma que não tem nenhum medo de ser condenado, pois é inocente.
O jantar é suntuoso, com comidas e bebidas fartas e deliciosas descritas com minúcia. Começa o julgamento e o advogado recomenda cautela ao réu. Este leva o julgamento inicialmente na brincadeira e fala sem pudor e sem entraves sobre sua vida, à medida que é interrogado pelo promotor. Ao longo do processo, o réu é levado a refletir com mais profundidade sobre seus atos, aparentemente inofensivos e vai se percebendo como culpado por ações graves, produzidas intencionalmente para tomar o lugar de seu ex-chefe e ascender socialmente, e tidas como naturais. Ele acaba por se sentir responsável pela morte de seu chefe que teve um infarto em consequência de suas ações. Todos vão paulatinamente se embriagando e o réu vai gradativamente assumindo suas culpas, saindo de um estado de inconsciência para assumir moralmente a responsabilidade por suas ações. Antes da pane e do julgamento não pensava muito sobre seus atos, vistos como normais no mundo competitivo em que vive. É essa visão apressada e superficial que é questionada no julgamento e o réu vai percebendo que ele é um ser moral e deve se responsabilizar pelo que faz.
A pausa propiciada pela pane, o julgamento encenado pelos anciãos se transforma em um momento de reflexão, de tomada de consciência, que acaba sendo insuportável para o suposto réu. A sentença proferida pelo juiz é pela pena de morte, que é aceita pelo representante comercial como justa, o que o leva a cometer suicídio.
Através desse conto o autor quer refletir sobre a inconsciência de nossos atos cotidianos, quando, imersos no mecanismo da vida, agimos sem nos dar conta do significado de nossos atos. O conto nos faz refletir sobre o sentido da vida que levamos e a necessidade de pausa para refletir sobre nossos atos, entender nossas motivações. A literatura é importante para iluminar questões com que nos deparamos na vida cotidiana: a competição e as maquinações para suplantar os concorrentes, as hipocrisias de todo dia, as traições, o agir inconsequente, a não percepção do significado de nossas ações, a incapacidade de responsabilizar-se por suas consequências.