Dhiego Morais 12/07/2020DespertarViva! Ainda viva. Viva mais uma vez. Com os membros dormentes e a circulação retornando tropegamente ao seu corpo, esforçou-se para se manter em posição fetal, ciente de que tudo o que experimentasse haveria de ser realidade, por mais decepcionante que fosse despertar por mais uma vez. Ela era Lilith Iyapo e ainda não estava certa sobre a identidade ou origem de seus captores, muito menos a situação no mundo lá fora. Havia guerra, havia catástrofe e morte, entretanto, ali, no quarto, reclusa, só havia prisão. Ela era Lilith Iyapo e fora despertada para cumprir o seu destino.
“Somos uma espécie adaptável — disse ela, se recusando a ser interrompida —, mas é errado infligir sofrimento apenas porque sua vítima consegue suportá-lo.”
É graças ao trabalho fantástico da editora Morro Branco que nós, brasileiros, estamos tendo a oportunidade de mergulhar nas histórias e na escrita impressionante de Octavia E. Butler, a “Dama da Ficção Científica”. Lançado originalmente em 1987, “Despertar” (Dawn) faz parte da trilogia de ficção científica Xenogênese, que se centraliza na hipótese de contato entre as raças humana e extraterrestre.
Octavia Butler ficou conhecida não apenas por seus inúmeros prêmios e indicações da ficção, mas principalmente por optar em narrar histórias onde grandes figuras negras femininas sobressaem-se como protagonistas, aproveitando-se ainda para abordar temas ainda contemporâneos a nossa sociedade, como o racismo, as divisões e disparidades de classes, o empoderamento feminino, a sexualidade, reprodução, identidade e a escravidão. Em Despertar, terceiro romance publicano em terras tupiniquins, a autora convida os seus leitores para uma viagem não muito longe de nossa atmosfera, a fim de observar o germinar do debate de alguns desses temas.
Lilith Iyapo é uma jovem negra que perdera não há muito tempo seu companheiro e seu filho em um acidente de carro. Com a humanidade se deteriorando, se autodestruindo pelo artifício de armas nucleares, Lilith desperta não pela primeira vez em um quarto, nua, porém com mudas de roupas a sua disposição. Inicialmente confusa, a protagonista imagina que passará por mais um interrogatório de seus captores — algo que ela pressupõe serem russos. No entanto, Lilith não tarda a descobrir que na verdade seus captores não passam de, na verdade, salvadores, de uma raça alienígena além de sua imaginação.
Suspensa — ou adormecida — por cerca de 250 anos, a jovem “nasce” já com uma missão dada por seus guardadores, os Oankali, alienígenas com habilidades tecnológicas assombrosas: Lilith foi escolhida para despertar os outros humanos postos em suspensão, bem como prepará-los para o seu retorno a Terra.
“Quantas vezes você consegue suportar que todas as pessoas sejam tiradas de você e ainda ter a determinação de recomeçar?”
Os Oankali são uma das criações mais interessantes de Octavia Butler. Com um corpo levemente humanoide, as criaturas possuem protuberâncias pelo corpo que se assemelham a tentáculos, feito que desagrada e choca Lilith e os demais humanos quando finalmente conhecem aqueles que os salvaram (ou capturaram) de uma Terra destruída e inabitável. Extremamente inteligentes, os alienígenas não apenas possuem tecnologia avançada, como também são especialistas em engenharia biogenética, sendo eles mesmos frutos de intensas adaptações evolutivas, genéticas, mutualísticas e simbióticas pelo contato com diversas outras raças extra-solares. Possuindo três gêneros, os Oankali tem um relacionamento plural, não vinculado exclusivamente pelo lado emocional ou afetivo; além disso, é comum que se vejam como mercadores de genes, aproveitando-se de suas características superiores para se manter em constante evolução.
Nikanj é um ooloi, o gênero assexuado dos Oankali, de um ramo familiar especificamente criado para acompanhar a transição dos humanos de volta à Terra, tão logo o momento chegue. Butler aproveita esse ponto para convidar os leitores a observar o relacionamento e convívio entre raças tão díspares. É importante ressaltar a reflexão gerada para as características não consensuais que ocorrem, bem como para o tema da bioética, já que os Oankali dependem da permuta genética para sobreviver, enquanto realizam inúmeras adaptações em organismos vivos, como em sua nave, seus alimentos, seu próprio corpo e com o corpo dos humanos resgatados.
Não obstante, há a relevância de se escolher uma protagonista feminina e negra para guiar o renascimento e o retorno da raça humana ao planeta Terra. Octavia propõe uma discussão valiosa quanto ao feminismo em sua trama, a constante sensação de medo em não se saber até que ponto seus guardiões dizem a verdade, até onde seus interesses se estendem, aliado ao perigo de se despertar pessoas que inevitavelmente a conectarão aos monstros que os prenderam dentro de uma nave-cidadela. Lilith está sozinha e precisa se decidir entre continuar vivendo uma vida cativa ou mergulhar em uma Terra reconstruída do zero, diferente certamente mais selvagem.
“Luto era luto, pensou. Era dor e perda e desespero, um fim abrupto onde deveria ter havido continuidade”.
Despertar é mais uma prova da habilidade assustadora de Octavia E. Butler de construir narrativas organicamente vivas; um verdadeiro ensaio plausível de se inspirar, cujos temas políticos, bioéticos, históricos e socioculturais levam a reflexão ao leitor. Dotado de beleza e de uma dose de estranheza, com personagens inesperadamente comoventes, o primeiro volume da série Xenogênese ascende como um romance que versa sobre o significado de ser humano e, essencialmente, de ter identidade.
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