Gramatura Alta 02/01/2019
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A personagem principal de DESPERTAR se chama Lilith. O nome é bastante conhecido por quem costuma ler livros do gênero fantástico. Isso porque ele está ligado a várias lendas e a partes de diversas religiões. Por exemplo, Lilith foi uma deusa na Mesopotâmia e na Babilônia, associada a ventos e tempestades, que seriam portadoras de enfermidades e de morte. Ela aparece como um demônio noturno na crença popular judaica. Na crença islâmica, ela é tratada como a primeira mulher de Adão, antes de Eva, e também é vista como a serpente que convenceu Eva a comer a maçã. Na mitologia Grega, Lilith representa a vida noturna e a rebeldia da mulher sobre o homem. Eu não sei dizer se Butler se inspirou em algumas dessas lendas, mas o que fica claro neste DESPERTAR, é que a Lilith de Butler poderá trazer a vingança e a destruição para seus salvadores. Ou captores.
Na obra de Octavia Butler, Lilith é uma mulher de trinta e dois anos, uma das poucas remanescentes da humanidade, que foi resgatada por seres alienígenas e mantida em animação suspensa por duzentos e cinquenta anos. Nesse período, ela foi desperta algumas vezes, para seus captores poderem estudar seu comportamento e compreenderem como o homem quase destruiu o planeta e todos que nele habitavam. Após esses dois séculos e meio, ela tem um último despertar, onde, finalmente, conhece a raça que a salvou, os Oankali. Seres de aparência horrível, com tentáculos e espinhos espalhados pelo corpo, mas que são pacíficos, são engenheiros biológicos que alteram formas de vida para que sirvam a seus propósitos, e sobrevivem à base do que chamam de permuta genética.
Eles salvaram a Terra ao preservarem e reconstruírem quase toda a fauna e flora, embora com algumas diferenças, deixando o planeta novamente habitável para os seres humanos que eles conseguiram resgatar após a última grande guerra. Mas antes de os devolverem ao planeta, eles querem ter certeza de que conseguirão sobreviver, além de realizarem a tal permuta genética. Acontece que a permuta, aparentemente benéfica, irá alterar geneticamente os descendentes dessas pessoas a um ponto que elas não serão mais humanas, mas uma nova raça. A função de Lilith nisso tudo, é convencer os humanos a colaborarem e ensiná-los a sobreviver nesse ambiente selvagem e sem qualquer traço de tecnologia. Ou seja, começar do zero, como nossos ancestrais, quando não exista nada além de terra e rochas.
Existem muitas questões filosóficas, humanas, sociais e raciais em DESPERTAR. Escrito em 1987, antes da queda do muro de Merlin e do fim da chamada Guerra Fria entre os EUA e a então União Soviética, ele traz parte da paranóia (muita dela com fundamentos) dos americanos. Isso é visto na desconfiança que algumas das pessoas, que eram despertadas, sentiam ao se verem presas em salas estéreis, sem móveis, e com uma justificativa de que aliens as salvaram e que passaram mais de duzentos anos dormindo. O que elas acreditam é que tudo não passa de uma experiência dos soviéticos ou da CIA. Lilith lida com essa situação de forma mais racional e prática, mas ela também passa por essa fase de desconfiança, até que vê pela primeira vez um Oankali.
Entretanto, a desconfiança persiste, uma vez que esses seres negam a maioria das informações que Lilith necessita para conseguir compreender o que eles querem e o que aconteceu enquanto ela dormia. Mais do que isso: ela quer saber o que eles fizeram com ela, e com os outros, durante todo esse tempo. Inclusive, uma outra questão é a forma como os Oankali tratam Lilith, comparável ao estudo que os cientistas humanos realizam com pequenos animais, ou ao tratamento com animais domésticos. Embora tratada com carinho, alimentada, ela é vista como um ser inferior, alguém que precisa ser educado, que precisa aprender a pensar e a se comportar, com uma liberdade limitada e uma vigilância constante.
Uma terceira questão é sobre a mulher e sua força dentro de uma sociedade majoritariamente machista. Lilith é a escolhida para liderar o despertar de um grupo de humanos, alguns deles homens. Ela recebe informações de cada uma das pessoas que compõem esse grupo, e ela escolhe acordar primeiro algumas mulheres, porque sabe que será mais difícil controlar os homens, será mais difícil convencê-los a serem liderados por uma mulher, além de um medo pela força física deles e do que eles podem fazer. Esse medo é totalmente fundamentado na nossa sociedade atual, e no livro, ele é exemplificado mesmo antes de Lilith receber essa tarefa de liderar e treinar esse grupo. Em uma parte anterior, e uma das mais tensas do livro, ela é apresentada a um homem que foi despertado anos antes dela e que escolheu ficar com os Oankali ao invés de retornar para a Terra. Esse encontro de Lilith com um homem que não via uma mulher há anos, é uma representação perfeita de como a maioria dos machos se sente superior a uma mulher.
Uma quarta questão é sobre a sexualidade e reprodução. Lilith é deixada aos cuidados de um jovem Oankali, Nikanj, que estaria em um período equivalente à puberdade humana. Inicialmente, os dois criam um laço profundo de amizade, onde Lilith chega a desempenhar o papel de educadora sobre os sentimentos humanos. Eles passam dois anos juntos, período em que Lilith aprende mais sobre os Oankali e aprende as técnicas necessárias para sobreviver e ensinar a sobreviver na Terra. Faz parte da permuta genética uma aproximação sexual, mas os Oankali não fazem sexo como os humanos, onde existem toques, carícias, penetração e inseminação. Mais além: eles não possuem um gênero sexual dominante. Então, tem uma parte do livro, onde Nikanj acaba forçando uma relação com Lilith e um terceiro personagem ao mesmo tempo. Esse terceiro personagem se sente atraído pela experiência, mas ele diz não. Não quer participar, embora ele se sinta excitado. A questão levantada é se uma raça que se guia biologicamente, que não conhece emoções na mesma intensidade que nós, ao enxergar o desejo físico de uma pessoa, pode ignorar seu intelecto, sua vontade racional, e a forçar a ter uma relação e isso não ser um estupro?
Como quinta questão, existe a força da liderança e o peso que ela exerce sobre o que é certo e o que é errado. Lilith foi levemente modificada pelos Oankali para conseguir liderar o grupo de pessoas que irão para a Terra. Ela se cura quase que instantaneamente da maioria dos ferimentos, ela é mais forte, ela é mais rápida, ela é mais inteligente e ela pode interagir com a nave, que é um organismo vivo e que pode ser modificado para atender as necessidades dos ocupantes, como a criação de um quarto, uma mesa, ou qualquer outro objeto e comida. Conforme as pessoas descobrem essas habilidades, elas passam a temer Lilith, passam a vê-la como alguém que não é mais como eles, mas mais como um alien. Por isso, Lilith toma decisões que são duras, que são necessárias para que eles aceitem sua liderança, e isso, claro, causa revolta, cria grupos rebeldes e traz, aos poucos, a violência.
Existem outras questões, como o preconceito e a intolerância, não apenas contra os Oankali, mas também destes para com os humanos, e dos humanos para com os humanos. Existe a questão dos Oankali alterarem organismos vivos às suas necessidades, o que isso implica em questão de liberdade e de abuso. Os próprios Oankali já se modificaram tantas vezes, por causa da permuta genética com outras espécies, que sequer podem retornar ao próprio mundo, uma vez que eles não são mais a mesma raça que eram ao começaram a viajar pelo espaço.
DESPERTAR é uma ficção-científica tão complexa, ao mesmo tempo que é tão simples, que levanta questões passíveis de discussão por horas. Os assuntos são incluídos de forma tão orgânica na história, que Butler parece um Oankali a escrever, criando cirurgicamente algo único e completo, com conteúdo suficiente para abranger uma educação ampla sobre o que somos e o que podemos nos tornar, com influência ou não de uma raça alienígena. Mas mais importante do que isso, DESPERTAR demonstra como o ser humano é falho, como é egoísta, como se colocado em um ambiente hostil, ele pode se tornar mais hostil e mortal, como ele é guiado pelo medo e pelo pensamento de que é superior a qualquer outro ser. Uma leitura intensa, profunda, extremamente inteligente e que deixará você com perguntas suficientes para questionar seu próprio modo de vida. E que venha o segundo volume, porque neste, Lilith não ficou satisfeita com a permuta obrigatória, com a necessidade de se transformar em uma raça nova, sem qualquer chance de negativa, e ela promete tornar a vida dos Oankali bem difícil. Igual às lendas.
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