Jr. 21/06/2020
A ficção expurgatória
Primoroso exercício de estilo por parte de Ian McEwan que toma o fazer literário em sua possibilidade de expurgação; ou seja, a arte narrativa, em Reparação, funciona como uma forma de passar a limpo questões para as quais a vida não romanceada dera respostas duras demais para serem aceitas – a personagem principal, consumida pelo remorso de um erro brutal, se vale, enquanto prodigiosa escritora, do poder das palavras para reescrever a história e buscar alguma absolvição.
O que resulta, dessa empreitada, é um meta-livro que, por meio de experimentações com estilos de escrita, perspectivas imbricadas e possibilidades da ficção revelam as engrenagens da elaboração literária – temos uma personagem, a protagonista, que não só escreve como compreende o mundo pelo prisma das letras no papel – e colocam em cheque a própria voz do narrador, em quem não podemos confiar, justamente por sabermos mais do que deveríamos sobre os truques da escrita.
O livro, então, fragmenta-se em pontos de vista de três personagens (Briony, Robbie e Cecilia, em diferentes fases de suas vidas) para compor uma história trágica cujas lacunas nada, a não ser o poder da ficção, é capaz de reparar – e não me refiro com isso a peças de um mistério a serem coladas, mas espaços em branco deixados na trajetória dos personagens em si; nas palavras nunca ditas, nos encontros jamais tidos, nos pecados não perdoados e, por fim, no processo de reparação que, efetivamente, não teve seu desenlace.
Esse jogo de perspectivas mexe com as posições geralmente confortáveis a que um autor e um leitor estão acomodados, e embora alguns desses truques narrativos me pareçam talvez menos surpreendentes do que McEwan pretendia, em sua proposta de subverter expectativas, o que fica da experiência desse livro é a de que, para além de acompanhantes passivos, fomos cúmplices nesse tortuoso processo de expiação, ao mesmo tempo divino e profundamente humano, que é o da escrita.
“Por meio de símbolos traçados com tinta numa página, ela conseguia transmitir pensamentos e sentimentos da sua mente para a mente de seu leitor. Era um processo mágico, tão corriqueiro que ninguém parava para pensar e se admirar. Ler uma frase e entendê-la era a mesma coisa; era como dobrar o dedo, não havia intermediação. Não havia um hiato durante o qual os símbolos eram decifrados.” (p. 51-52)