Aione 26/03/2015Desde que assisti a Desejo e Reparação e me apaixonei por ele, tenho curiosidade de ler sua obra de origem, Reparação, de Ian McEwan.
Como indica a sinopse, o livro traz a história que se inicia com Briony Tallis presenciando “uma cena que vai atormentar a sua imaginação: sua irmã mais velha, sob o olhar de um amigo de infância, tira a roupa e mergulha, apenas de calcinha e sutiã, na fonte do quintal da casa de campo. A partir desse episódio e de uma sucessão de equívocos, a menina, que nutre a ambição de ser escritora, constrói uma história fantasiosa” que a leva a cometer “um crime com efeitos devastadores na vida de toda a família.”
A narrativa se dá em 3ª pessoa, excetuando-se apenas o epílogo, narrado em 1ª pessoa. Na primeira parte da história, que se desenvolve em apenas um dia no ano de 1935, Briony, Cecília e Robbie são os personagens através de cujas visões analisamos os fatos. Já na segunda parte, a ótica da narrativa se concentra apenas em Robbie, enquanto a terceira e última parte traz a visão de Briony. Em ambas, o período no qual os fatos são narrados é o do início da 2ª Guerra Mundial.
“Parada no quarto, aguardando a volta dos primos, Briony deu-se conta de que poderia escrever uma cena como aquela ocorrida junto à fonte e que poderia incluir um observador oculto, como ela própria. Imaginava-se agora correndo para seu quarto, pegando um bloco de papel pautado e sua caneta-tinteiro de baquelita marmorizada. Já via as frases simples, os símbolos telepáticos se acumulando, fluindo da ponta da pena. Poderia escrever a cena três vezes, de três pontos de vista; sua excitação era proporcionada pela possibilidade de liberdade, de livrar-se daquela luta desgraciosa entre bons e maus, heróis e vilões. Nenhum desses três era mau, nenhum era particularmente bom. Ela não precisava julgar. Não precisava haver uma moral. Bastava que mostrasse mentes separadas, tão vivas quanto a dela, debatendo-se com a idéia de que as outras mentes eram igualmente vivas. Não eram só o mal e as tramóias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisava ter.”
página 37
Foi Briony quem me encantou, em um primeiro momento. Foi impossível não me sentir fascinada pela personagem, levando-se em consideração sua ambição em ser escritora e o funcionamento de sua mente. Briony preza pela ordem e sua mente apresenta a dicotomia do Bem e do Mal, a partir da qual constrói a moral de suas histórias. Assim, enquanto fala da peça de teatro escrita para agradar seu irmão, é possível observamos seu desejo em controlar e manipular situações de acordo com suas próprias crenças; em suas histórias, ela assume o papel soberano de colocar todas as pessoas e situações agindo conforme sua vontade. É a personalidade de Briony a principal definidora dos desenrolares da trama: não fosse sua maneira de enxergar e interpretar o mundo, a história não se desenvolveria como acontece.
É inegável a força da escrita de Ian McEwan e sua capacidade de envolver o leitor. Ainda que muitas de suas cenas sejam um tanto quanto descritivas, sua maneira única de fazê-las faz do livro, mais do que agradável, completamente prazeroso de ser lido. Ainda assim, a leitura exige um pouco do leitor, não se configurando como “rápida”.
“Agora que era tarde demais, a ideia lhe parecia óbvia: uma história era uma forma de telepatia. Por meio de símbolos traçados com tinta numa página, ela conseguia transmitir pensamentos e sentimentos da sua mente para a mente de seu leitor. Era um processo mágico, tão corriqueiro que ninguém parava para pensar e se admirar. Ler uma frase e entendê-la era a mesma coisa; era como dobrar o dedo, não havia intermediação. Não havia um hiato durante o qual os símbolos eram decifrados. A gente via a palavra castelo e pronto, lá estava ele, visto ao longe, com bosques verdejantes a se estender a sua frente, o ar azulado e embaçado pela fumaça que subia da forja do ferreiro, e uma estrada com calçamento de pedra a serpentear à sombra das árvores…”
página 35
É difícil expressar em palavras o encantamento que Reparação me causou a cada página. Embora eu já soubesse o final da trama, minha leitura não foi em nada prejudicada e, talvez, tenha assumido uma ótica diferente e positiva justamente pelo meu conhecimento dos fatos. Pude analisar cada parte, cada recurso do autor de forma que seria impossível em um primeiro contato com a história. Independentemente de se saber ou não os desenrolares, é fato o quanto tudo é fascinante e genialmente construído por McEwan. O autor consegue expressar as emoções e pensamentos de cada personagem de forma a atingirem o leitor, ao passo que incita reflexões por meio de suas visões e realidades vividas ao longo do enredo.
Ainda que a leitura envolva e conquiste a cada página virada, sua total compreensão, apreciação e genialidade só se consolidam ao final – no caso do leitor não ter tido contato com a história, por exemplo através do filme, como em meu caso. Conhecendo-se o final, a estrutura da obra assume outro significado e, dessa maneira, demonstra o quanto Ian McEwan foi magistral ao criar essa obra. Sem dúvida alguma, Reparação foi mais um livro a entrar para minha lista de favoritos.
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http://minhavidaliteraria.com.br/2015/03/24/livros-na-telona-reparacao-ian-mcewan/