Douglas MCT 11/07/2010
Cinema, Música e Literatura de mãos dadas
[sem spoilers]
Jim Anotsu é um jovem autor que, diferente de outros da mesma idade, tem uma carga literária invejável, uma paixão pela música indie e um conhecimento parrudo da sétima arte que faz toda diferença em seu romance de estreia: “Annabel&Sarah”.
A premissa é simples: duas irmãs gêmeas de 15 anos, Annabel (a gótica, indie e arrogante, mora com o pai cineasta) e Sarah (a patricinha, pop e fútil, mora com a mãe cirurgiã plástica) não se entendem, mais por conta da primeira, que carrega em si o complexo da separação dos pais, ao qual não aceita.
Em um fim de semana qualquer, elas são obrigadas a sair num passeio juntas e, ocasionalmente (será?), se deparam numa situação inusitada: dentro de um bar vazio e sujo, com garrafas convidativas e pinturas de Andy Warhol, uma TV se liga sozinha, apresentando o “vilão” da trama: a mocinha Estrela-da-Manhã, que puxa Sarah para dentro de um outro mundo e pede a irmã que encontre a flor Amor-Perfeito, para libertar ambas. Annabel vai atrás. Só que cai em um mundo paralelo.
A aventura começa aí.
Mas a semente do plot foi implantada bem antes, em nuances entre as gêmeas e recheios de cultura pop e contemporaneidade entre os parágrafos, que vão desde The Wonbats, o famoso cozinheiro Jamie Olivier, All Stars a O Grande Lebowski.
Inicialmente, atente-se ao segundo biscoito da sorte, que terá um significado sutil e poético próximo ao desfecho.
– Como posso saber se você diz a verdade? – Perguntou Annabel.
– Você não pode. Isso é um salto no escuro. E, acima de tudo, não vejo outras opções acenando para você. – Em tom carinhoso, acrescentou: – Venha, estenda seus braços para mim.
CONTOS DE FADA MODERNO
Apesar da referência a Alice do Carroll na quarta capa, Annabel&Sarah está mais para Coraline, do Gaiman. A terrível Gioconda (Da Vinci se orgulharia de ver sua obra-prima tão bem representada com um sorriso enigmático e mais ainda cínico) é uma versão deplorável de a Outra Mãe, atormentando Sarah em Allegria, um mundo onde todas as pessoas são obrigadas a sorrir e ser felizes, com a ajudinha de uma torta. Fantasia pura e bizarra, que daria um belo e sinistro curta-metragem nas mãos de Tim Burton.
A barata gigante Yorba é o personagem predileto do autor e Beatrice é um doce. Não tem como não amar a garotinha tão-tão legal, que fala assim, de forma doce-amorosa.
Preste atenção: Jim Anotsu entrega o ouro sem entregar e é neste mundo onde reside uma pegada interessante. A surpresa é revelada numa frase.
A dicotomia das protagonistas se dá não somente em suas personalidades, mas também em estrutura narrativa, que o autor domina de forma fluída e criativa. Enquanto Sarah passa apuros e aprende a se virar, chegando ao ápice da ira, num mundo alegremente triste, de pura Fantasia; Annabel rouba os melhores momentos numa trama noir, homenageando originalmente os clichês de plot policial – é só observar os diálogos ácidos, cínicos e secos dos personagens antropomórficos deste mundo. Ann e Op Spade tem os melhores papos do livro inteiro. O timming deles beira a perfeição. Não nego meu apreço pelo lobo detetive, semelhante a mim do focinho a pata.
– Você está fazendo chantagem?
– Sim. Sou boa nisso.
– Supondo que à tenha, eu poderia arrancar de você à força a informação.
– Não seria difícil. Mas você tem um grande caso nas mãos, desperdiçaria essa chance?
– Agora você está apelando para o meu ego.
– Certamente.
Saindo em busca da flor Amor-Perfeito, Ann usa de chantagens e inteligência (coerente para a idade, nada exagerado), movida por uma arrogância e cinismo peculiares.
Humanos estão em extinção nesse mundo, onde ela viaja de um lugar ao outro, que vão de nomes curiosos como Kerouac a Ilha da Expectativa (pesque as referências à vontade, até este parágrafo já tem mais de 10).
Ao contrário do que alguns resenharam, Annabel não passa “despercebida” por outros, mesmo sendo uma criatura estranha naquele cenário. Ela apenas não tem importância para eles, pertencendo a uma casta de pouco valor. Quem possui humanos, não só infringe a Lei, como também deve ter motivos para tê-los – além do fato dela e Op sempre irem para ambientes alternativos, inóspitos, onde maus elementos habitam. Por que se importariam?
Diferente da maioria dos leitores, não gostei da raposa Dean Chinaski. Praticamente é o personagem mais raso do livro. Aparece e some, sem surtir efeito de interesse. Tem um ponto importante no livro, mas foi mal trabalhado. Falta recheio ao espertalhão.
Op Spade compensa a raposa, sendo extremamente instigante e profundo, com um passado negro. O envolvimento dele com as demais criaturas conduz boa parte do roteiro para o clímax na estufa.
Destaque para o Panda mafioso, Chen Yimou, que leva o nome de dois diretores chineses famosos e possui uma personalidade muito semelhante a de um certo poderoso chefão; e também para o cientista Cody Corso (um poeta de mesmo sobrenome existiu, sabia? Gregory.), que cria uma máquina steampunk (será?) chamada Uivo, única capaz de viajar tempo-espaço pela Surdez, o rótulo que Jim dá para a película de realidade entre os mundos. Genial.
Estrela-da-Manhã é outro personagem sem graça. Apesar da importância crucial e compreensível para o plot, faltou-lhe algo mais que incômoda aqui e ali, mas não chega a estragar nas cenas em que aparece – e não são muitas.
Em compensação, o velho do jardim, um cavalheiro verde, é interessante em demasia. Falar sobre ele é entregar parte da história. Aparece menos ainda, mas sua importância reside num todo. O leitor que sacar quem ele é, por conceito, ganha uma torta de morango.
Teríamos aqui um anti-Nárnia?
– Lugar Nenhum. O destino final de qualquer pessoa.
– Não vi mais nenhuma pessoa aqui. -- Afirmou a menina.
– O que você acha que são todas essas borboletas, sons e cores? Mas ainda não é hora para você entender isso, é cedo demais.
Tudo bem. Dou algumas dicas – leiam as letras dessas duas músicas:
http://letras.terra.com.br/panic-at-the-disco/1204237/traducao.html
http://letras.terra.com.br/the-beatles/195/traducao.html
Pronto. Agora posso te jogar buraco abaixo. Continuemos.
O ARQUITETO COMO CONTADOR DE HISTÓRIAS
Annabel cresce como personagem, na verdade, é nos interlúdios.
O primeiro e o segundo deles são escritos na primeira pessoa, como uma agenda. Por ali descobrimos mais do background da personagem, que ressalta pontos aparentemente desimportantes, mas que não o são, refletindo em bons ecos no decorrer da trama linear. É tudo uma questão de atenção.
Lesbianismo entre uma delas? Pode apostar que sim, mas isso é a única coisa irrelevante para o desenvolvimento do todo. Se apegue as outras coisas, sem neura.
O terceiro interlúdio mostra a tensa relação de Ann com a mãe. Único momento em que a personagem se revela antipática. Pela história, o leitor descobre que as gêmeas são mimadas em igualdade e chatas como qualquer adolescente – mas funcionam como protagonistas de uma forma atraente. O mimo entre elas, também, se dá de forma diferente. Só lendo para absorver com exatidão.
O quarto mostra uma relação... diferente, entre Annabel e Sarah. A chave da obra está aqui. É um trecho importante, mas mais ainda emocionante. As duas são tridimensionais como personagens e eis um dos maiores trunfos do autor.
O último interlúdio também pode ser compreendido como epílogo. É doce, mas o desfecho é o que menos importa no livro. A obra não se dirige a isso.
O destino das irmãs é sacado perto do final, a resolução dos casos também. O anti-clímax é proposital e funciona na proposta. Isso não é importante.
Jim revela que seu livro é uma história de punição. Não discordo, mas acrescento: é também uma história de redenção.
O leitor de coração mole e sentimentos frágeis pode vir a chorar. Eu quase.
As poucas cenas de abraços sinceros na história nos levam a isso.
Jim Anotsu é um autor de mão cheia, promissor e tímido. Ele guarda as cartas na manga e brinca com a expectativa do leitor. Criatividade é a palavra-chave.
A Draco é uma editora de visão, bom gosto e profissionalismo. Vide sua ótima edição por aqui, impecável, coerente. Capa linda, diagramação mais ainda.
O foco da narrativa é o desenvolvimento, o “meio”. A interação, as consequências.
Não que não seja em outras tramas, mas quero ressaltar que o fim, realmente, não importa. Não aqui.
Annabel&Sarah é um conto de fadas moderno, com referências pop-indie, beatnik, com um leque eclético de homenagens a bons filmes, uma literatura vasta e um gosto musical peculiar. Quem lê e vê apenas as desventuras de duas meninas por mundos mágicos, está perdendo metade da graça que a obra oferece. O livro é muito mais do que isso, nem tão implícito assim – observe os nomes de personagens, lugares, objetos e diálogos; Atente-se ao estilo, as narrativas que se alternam da tradicional ao cut-up (Burroughs facts), as referências, ao cinismo e humor negro do narrador. Nada ali é gratuito e nem sempre o propósito deve ser levado muito a sério ou profundamente. Olhe lá: temos um astronauta na praia!
Leia o livro ao som de The Smashing Pumpkins. Uma experiência lisérgica agradável.
– Sabe, Sarah, você é irritante, convencida e arrogante. – Disse Annabel. – A criatura mais estressada do mundo... E meu sonho é mandar você para a China, com passagem só de ida. Mas acho que se eu fizesse isso, minutos depois eu iria até Pequim para te trazer de volta.
– Jura?
– Claro que não.
Annabel&Sarah é uma obra tão legal quanto uma tartaruga.