jota 24/09/2019O gordo (Bouvard) e o magro (Pécuchet) à francesa...Este volume inacabado de Gustave Flaubert (1821-1880), autor que li pouco, apenas o conhecido e excelente Madame Bovary e Três Contos, onde se destaca Um Coração Simples, uma das melhores histórias curtas de todos os tempos, não me agradou tanto quanto eu esperava, melhor, minhas expectativas quanto a essa história eram bastante altas, por conta daqueles livros e outras informações. Ao final, Bouvard e Pécuchet revelou-se para mim uma obra com alguns momentos engraçados mas no geral bastante rebuscada, erudita, enciclopédica mesmo.
Minha observação nada tem a ver com o fato de o livro não ter sido finalizado; tem muito mais a ver com suas quase quatrocentas páginas em letras pequenas e por não me parecer tão engraçado quanto muitos leitores e críticos declararam ser. Livro que o célebre Guy de Maupassant, no Posfácio, declara ser uma comédia particular, intensa. Porque é sobretudo crítica, enumera uma porção de crenças que circulavam sem qualquer base científica, mas que durante muito tempo foram tidas como verdades. Como, por exemplo, a de que a calvície seria provocada por excessos na juventude ou concepção de grandes pensamentos. E por aí vai...
Está claro que Flaubert não pretendia escrever uma longa anedota que nos fizesse rir o tempo todo. Porque seu objetivo era ironizar a sociedade de seu tempo, especialmente a valorização que então se dava ao conhecimento enciclopédico, uma especialidade da cultura francesa. Os franceses sempre foram pródigos em ideias; pensando bem, como na antiga Grécia e na Alemanha, na França floresceram muitas correntes filosóficas, não? Flaubert reuniu para este livro informações sobre todos os campos do saber e as colocou na boca ou na cabeça dos personagens, e vê-se que uma quantidade infinita de besteiras foi pensada ou registrada como se fosse ciência, filosofia, medicina, higiene etc.
E tome, em longos capítulos, além desses campos, jardinagem, agricultura, química, astronomia, arqueologia, história, literatura, política, magnetismo, feitiçaria, religião, educação etc. No final ainda temos o fragmento do Dicionário de Ideias Feitas, que dá bem uma noção do que Flaubert ainda pretendia desenvolver. Imagino que ele teve de fazer uma imensa pesquisa para poder escrever seu livro. O que não era coisa tão fácil assim em seu tempo. Pensa-se até que, além de certos problemas físicos e financeiros que teve, ele tenha morrido de hemorragia cerebral por conta do enorme trabalho que esta obra lhe deu, como sugerem algumas biografias.
Apesar da variedade dos assuntos tratados, dos diversos campos do saber que tentaram explorar profundamente, a narrativa acaba sendo, me pareceu, um tanto repetitiva: Bouvard e Pécuchet terminam sempre se dando mal em sua busca pelo conhecimento. Fracassam em todas as atividades que iniciam e depois abandonam, nunca as terminam. Mesmo assim continuam procurando outras coisas em que possam aplicar seu tempo e dinheiro (gastar mal talvez fosse a melhor expressão para o caso), alto valor proveniente de uma fortuna recebida por um deles. Logicamente, se algum projeto tivesse dado certo logo de início então não haveria razão de Flaubert continuar a escrever mais, não haveria o livro. E olha que ele planejava um segundo volume para narrar outras desventuras e trapalhadas dos dois curiosos amigos.
Não sendo um romance tradicional e também porque permaneceu inacabado Bouvard e Pécuchet tem, digamos assim, um final aberto, que permite ao leitor depois de fechar o livro ficar imaginando aonde mais a dupla iria se meter e dar errado. Não que ambos fossem simplesmente tolos ou ingênuos: em algumas ocasiões eles se comportam mal, são politicamente incorretos (para usar uma expressão que não havia então), e mesmo assim ganham sempre nossa simpatia. Coisa de literatura mesmo, que depois se repetiria no cinema, com Stan (o magro) e Ollie (o gordo) a inesquecível dupla de comediantes da chamada era de ouro hollywoodiana. É verdade que jamais li ou ouvi dizer que aquela dupla tivesse sido inspirada pelos personagens de Flaubert. Mas, quem sabe?
Lido entre 29/08 e 23/09/2019. Minha avaliação: 3,7.