Samuel Paiva 14/03/2012
A Doce Graça das "Aventuras do Sr Pickwick"
O filósofo André Conte-Sponville disse, distinguindo humor de ironia, que “É preciso que o riso acrescente um pouco de alegria, um pouco de doçura ou de leveza à miséria do mundo, e não mais ódio, sofrimento ou desprezo. Podemos rir de tudo, mas não de qualquer maneira”. É exatamente essa leveza que o Inglês Charles Dickens (1812-1870), em As Aventuras do Sr. Pickwick, tão agradavelmente nos proporciona. Pouco menos de seiscentas páginas divididas em cinqüenta e sete capítulos, a obra traça de elegante e cômica forma o perfil da Inglaterra oitocentista, onde os singulares membros do clube londrino “Pickwick”, de pesquisa científica, decidem aventurarem-se pelas províncias do interior da terra da Rainha. A seqüência de pitorescas e ingênuas situações que a partir dessa iniciativa se desenvolverão merece a atenção do homem do século vinte e um, tão acostumado com um humor, que é, antes de tudo, mau humor, tão agressivo como a publicidade, quanto até mesmo o amor dos pós-modernos tempos líquidos.
Snodgrass “o poeta”, Winkle, Tupman “o apaixonado”, Pickwick “o observador da natureza humana” e o criado Weller, esse é o time - sem contar os outros personagens que aparecerão ao longo da narrativa - que por serem tipos tão deliciosos e bem construídos, faziam o próprio escritor chorar de rir, borrando as páginas de tinta ainda fresca, como esse mesmo confessara.
Advogados, pastores, atores ambulantes, militares, encantadoras senhoras, todos são apertados pela pena de Dickens até que expilam suas pândegas características. Sem olvidar das partes em que o escritor tenta nos fazer chorar, talvez para em seguida gargalhar compreendendo a desnecessidade de tais expedientes, diante de uma raça, como bem diz o criado Samuel Weller, que foi jogada no mundo de cabeça para baixo, para brincar de esconde-esconde com as aflições da vida. Quem ri de si, antes de mais nada se aceita, e se aceitar, exige humildade, de quem se sabe humano, demasiado humano, para almejar perfeição.
Com talento se extrai tudo de tudo, se não, vejamos o que escreve Charles Dickens:
“Há pouquíssimos momentos na vida de um homem em que ele experimenta aflições mais ridículas e provoca menos caridosa comiseração do que correr atrás do chapéu. São necessárias muita frieza e uma dose especial de discernimento para pegá-lo. Se a gente se precipita, passa por cima dele; se corre para o extremo oposto, perde-o completamente. O melhor meio é acompanhar de perto o objeto da perseguição, com prudência e cautela, esperar uma boa oportunidade, colocar-se gradativamente na frente e, depois, mergulhar com presteza, agarrá-lo pela copa e enfiá-lo na cabeça, sorrindo graciosamente o tempo todo, como se considerasse aquilo tão divertido como o consideravam os outros.”
É por tudo isso, que, não fugindo do espírito da obra, tampouco da prolixidade de resenhista, concluo dizendo que ler Charles Dickens, é tão impactante, e ao mesmo tempo sutil, como fazer um corte na alma, usando “a faca sem lâmina à qual falta o cabo”, de propriedade de Lichtenberg.