Krishnamurti 11/04/2019
Com efeito, “A depressão tem sete andares e um elevador”.
A depressão é enfermidade que acomete o ser humano de uma forma vagarosa e sutil. Em muitos casos se confunde com a vigência de outras doenças do corpo e da alma. Sabe-se muito difusamente que é um desequilíbrio psiquiátrico, crônico e recorrente, que produz alterações do humor e se caracteriza por tristeza profunda, sem fim, associada a sentimentos de dor, amargura, desencanto, desesperança, baixa autoestima e culpa, aliada a distúrbios do sono e do apetite. Todo esse quadro, uma vez não tratado, geralmente leva à falta de sentido para a vida e ao extremo do suicídio. Muito bem; a ignorância geral costuma classificar ainda, tal estado, como pura e simples doidice, ou mesmo desvãos de caráter criminoso. O certo, e certíssimo, é que continuamos esses eternos desconhecidos que ainda somos. Com efeito, é questão de difícil percepção e tratamento.
Mas a palavra ‘doidice’ mencionada acima nos leva a refletir também sobre o meio em que vivemos e onde essa verdadeira praga tem campo fertilíssimo (segundo entendidos, a cada ano, surgem 2 milhões de novos casos). Detonamos com referenciais morais e da instituição familiar e as referências (quando existem), passaram a ser meramente internas. Cada um decide, sem qualquer vestígio de responsabilidade social, o que é bom e o que é mal e acabou-se. Em um meio assim, o que vale é a performance, o homem de sucesso, e a dita ‘felicidade’ buscada a qualquer preço. Passou a valer exclusivamente o que temos. O que pensamos e no que acreditamos? Não vale nada. Arrasamos ainda com qualquer ideia de bem comum, e individualmente perdemos a noção de que se pode ser útil. Em suma, vive-se somente para si e não há qualquer papel social. “A gente somos inútil”, literalmente. Essa falta da noção de utilidade deprime muito. Eis em verdade, a nossa doidice geral.
É preciso coragem para encarar de frente tantas facetas dessa mesma moeda que constitui a depressão na vida humana. É preciso uma coragem descomunal para tocar em tantas feridas que se vão esgarçando cada vez mais. Coragem, repetimos, é o que nos vem a cabeça ante um livro como “A depressão tem sete andares e um elevador” - Poesia, da senhora Isabela Sancho. Um valioso projeto editorial que além de revelar um talento literário, investe ainda em elementos formais, qual seja o molde do volume (12 x 26cm), que sensorialmente (capa inclusive), sugere a verticalização do percurso de um elevador, além de sugestivas ilustrações da própria autora.
“A depressão tem sete andares e um elevador”, é em verdade um longo poema que se movimenta com ritmo e vigor poético em 7 andares metafóricos ( e 116 páginas), representando os estágios evolutivos da enfermidade. Curioso notar; a autora em entrevista recente e falando de uma outra obra sua, declarou a respeito de “coisas que não são capturáveis pelo olho humano”: “Crescem sem que saibamos quando e como, sem alarde, ainda que bem debaixo dos nossos narizes. Então, como se de um dia para o outro, se mostram em seu pleno vigor.” O poema inaugura-se com:
“A depressão tem sete andares / e um elevador. / Cabem dez de mim / na plataforma. // Doze, // se nos espremermos, / mas não é preciso. / Aqui há // apenas uma. // As demais desertaram.”
Mais adiante tomamos ciência da gravidade da situação: “Não há painel, / interfone, / um botão de parada forçada, / o botão // de abrir já essas portas. // Em caso de emergência não tenha uma.”
As ascensões e descidas bruscas vão revelando palavras dolorosamente conhecidas pelos que sofrem a depressão, seja no plano físico (apatia, vontade de morte, vertigem de um refluxo, necessidade de se deitar um pouco, aflições sem motivos, culpas, malogros, medos, alguém que me ame de graça), seja no plano social virtualmente propício a estados depressivos: ...“o futuro com a pressa / de um mundo.” “Não andes, perderas uma perna. Nem tentes / que te arrancam as duas.” E o que dizer, o que pensar, de versos como estes? “Urna fraudada, //caixa-preta, / cofre-forte. // Sua democracia fingida / decide por mim / sem mim.”
Vejamos aspectos das paradas de percurso: No primeiro subsolo: ... “Eu não sei de onde vem / repentino / o meu choro.” No segundo: ... “eu invento uma memória.” Sinta-se o pesado simbolismo da solidão: “A afronta do orgasmo / alheio / aos ouvidos / do meu celibato.” No terceiro, o peso do exílio: ... “em casa sozinha”. À medida que o elevador se move sem controle, dá-se conta de que:... “há toda a diferença // entre o que é só uma descida / e o que já se tornou / uma queda.”
O quarto subsolo: ... “não fica no hemisfério polar.” No quinto: “Desgovernada. // Com a sirene louca.” E; quanta tristeza, quanto exílio em uma única página: “E curioso estar viva // Conto às piscadelas de um cão / que é todo ouvidos / às minhas histórias.” No sexto subsolo: Esbarrões. No sétimo: ...“há um pequeno alçapão / para o inferno.” Veja-se nos versos da página 46, a que ponto se pode chegar: “A porta emperrada / dispensa o aviso / de interdito // no elevador. // E a escada alternativa / à minha pressa / tem apenas / os primeiros degraus // para lugar nenhum.” Já os versos da página 52 nos mostram a que nível decai o amor-próprio: “O espelho de mão, / sua moldura / de flores boleadas. / O vidro curvo / também me arredonda. // então me afina // e repuxa. // Faz os olhos saltarem, / a boca sumir. / O nariz tombar / e as narinas me abrirem. / Eu tento me capturar // em um relance / mas já não faço ideia // Com que espécie de coisa / eu me pareço?
Todavia, o ponto fulcral do longo poema (e ao final do livro o leitor perceberá porque), se manifesta na profundidade desses versos:
“Meu coração em conserva // no vidro de maionese / lavado. / Embebido em preservação, / sustado // em espera. // Eu o chacoalho, / ele não se mistura. / Quica lento e sobe / sonolento. // Resguardado em outra era, / denso de si.”
Entretanto, e debaixo de todo sofrimento, ocorrem aqui e ali, lampejos de equilíbrio ante a dura realidade. Há afinal de se escolher um botão porque [o elevador ameaça despencar no poço escuro] e só há duas alternativas para essa louca viagem: “subir aos jardins / ou fazer visitas de hospital.” Que caminho escolheremos? Assim mesmo no plural? [Corações em conserva!] A grande e suprema loucura que nos ameaça desde sempre é não perceber que o mal que recai sobre nosso semelhante reflete diretamente em todos nós.
Podem os mais desavisados taxar a obra no seu aspecto meramente literário como exemplo de poesia hermética. E o é somente na medida em que tenta dar conta dos imensos labirintos do pensamento humano em seu desespero silencioso. Por outro lado, a presença de forte condensação metafórica implica no impacto que as imagens exercem sobre o ser que se expressa. Ou, como bem escreve Cláudia Alves na orelha da obra, versos que “se desdobram de cima para baixo, como o eu lírico que se afunda cada vez mais em si mesmo em um processo depressivo”, e que registra indelevelmente o desperdício do bem mais valioso que possuímos; a vida: o indivíduo ao invés de utilizar o seu potencial energético para desenvolver potencialidades evolutivas, vivendo intensamente as experiências e os desafios que a vida lhe apresenta, dissipa energia nos sentimentos de autocompaixão, tristeza e lamentações. Sofre e não evolui. Este, nos parece em suma, o louvável esforço de compreensão e a necessária dose de empatia, apoio, amparo, assistência, socorro e caridade, que necessitamos neste mundo tresloucado que criamos. Esta sim, a grande loucura a debelar. Não é justamente isso que falta àqueles que padecem da depressão? É a pergunta que não quer calar, e que a senhora Isabela Sancho responde na profundidade de seus 7 andares/abismos subterrâneos.
Livro: “A depressão tem sete andares e um elevador”, Poesia de Isabela Sancho, - Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2019, 116p.
ISBN 978-85-5833-494-5
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