Arsenio Meira 27/01/2014
A Prosa Urbana
Rubem Fonseca soube retomar o material dos dramas cotidianos da crônica urbana brasileira que vem desde Machado de Assis e Lima Barreto (sobretudo com este segundo, num plano mais específico), passando por João do Rio até o impagável Nelson Rodrigues e o visceral João Antônio. Neste complexo cenário, em narrativas impactantes, viscerais, Rubem Fonseca percorre favelas, subúrbios, ruas e mansões, revelando e retratando cruamente a violência, o apelo comercial da cultura de massa, o embate entre as classes, o acirramento das diferenças econômicas, o preconceito e o erotismo oriundos das novas relações sociais estabelecidas no Rio de Janeiro da segunda metade do século XX.
Publicada em 1979, a coletânea de contos "O cobrador" é uma obra de Rubem Fonseca que traz à tona a marca registrada de sua produção literária, rapidamente descrita acima.
O livro não destoa do que o escritor já vinha desenvolvendo nas produções anteriores, levando-se em consideração a fortuna critica que tem sido produzida a respeito da obra do escritor carioca. Da vida cotidiana citadina, mais especificamente do caos das grandes metrópoles, retira os motivos desses contos, sempre veiculados por meio de uma linguagem de fluente articulação, na qual se percebe, em primeiro plano, a ação propriamente dita, sem espaço para grandes devaneios, monólogos reflexivos.
A obra é composta por dez contos (Pierrô da Caverna, H.M.S.Cormorant em Paranaguá,O Jogo do Morto, Encontro no Amazonas, A Caminho de Assunção, Mandrake,Livro de Ocorrências, Onze de Maio, Almoço na Serra no Domingo de Carnaval e O Cobrador), os quais representam desde micronarrativas, com no máximo três páginas, a contos com maio extensão. As temáticas e os focos das narrativas são diferenciados entre si, mas, ao todo, compõem uma congregação de cenas do grotesco universo bárbaro que perfaz a vida cotidiana no cenário urbano.
Pode-se, desse modo, dizer, que há uma coerência interna entre os contos que estão compilados em "O Cobrador", tônica que tem sido perseguida por Rubem Fonseca a cada nova publicação sua. As cenas ostensivas de violência ou a iminente sensação de que algoinsalubre e infame está para ocorrer acompanham as dez narrativas que compõem essa obra: em "Pierrô da Caverna", primeiro conto da coletânea, a psique doentia, simultaneamente conturbada e sagaz do narrador - personagem, um escritor pedófilo, transpõe qualquer limite considerado como aceitável, posicionando-o entre a normalidade e o intolerável, há a presença de uma existência infame;"H. M. S. Cormorant em Paranaguá", a narrativa ambientada no século XIX, agride o leitor e o padrão de normalidade ao trazer à tona o caso incestuoso entre o narrador-personagem e sua musa-irmã, com toda a ambivalência que as duas possibilidades podem abarcar, além de ter uma clara crítica ao comportamento romântico do século XIX, amplamente ironizado neste conto.
"O Jogo do Morto" é a narrativa que evidencia o cenário típico dos casos de grupos de extermínio, a banalização da violência é o fio condutor da trama, quando percebemos que uma aposta a respeito da
a quantidade de cadáveres, determinará os rumos da ação desses grupos: e os resultados sombrios deste jogo, demarcam a banalidade da violência e as ruínas de uma sociedade civil esmagada pelo peso de sua própria inércia e pela presença criminosa e omissiva do Estado. "Encontro no Amazonas" é a trajetória de um sujeito que, para consolidar sua missão (um crime encomendado), percorre as mais remotas localidades amazônicas em busca de uma vítima de quem se desconhece a identidade. "A Caminho de Assunção", uma narrativa ambientada em um cenário de luta armada, ou seja contemporânea ao tempo em que foi escrita, desenvolve o trauma gerado por grandes catástrofes provocadas pelo planejamento (precário) humano, com alusões à Guerra do Paraguai; "Mandrake", velho conhecido dos leitores de Fonseca, é um conto com clima de narrativa policial, evolui a partir de um assassinato de procedência duvidosa, cujo desfecho fica sob o encargo do investigador, corruptível e tão questionável quanto os demais personagens da trama.
"Livro de Ocorrências" é a narrativa curta que sintetiza a rotina das delegacias de polícia, onde os crimes hediondos, de tão comuns, são vistos com indiferença pelos que dela fazem parte, a ponto de tomarem um simples cafezinho ouvindo fatos macabros, sem o menor franzir de cenho. O conto "Onze de Maio" revela a manipulação sofrida por idosos, reclusos em um asilo homônimo, alienados de sua realidade. "Almoço na Serra no Domingo de Carnaval" , penúltimo conto da coletânea, é a estória de um sujeito que parte para uma ação de vingança, incontrolável, porém sutil, contra a família que supostamente lhe toma as posses.
"O Cobrador", último conto, que fecha a coletânea, apresenta a narrativa de um sujeito em estado de fúria, que reage em estado animalesco, vingativo contra todos os elementos agressores, a fim de aniquilar os fatores que lhe provocam angústia. A impressão que os contos provocam é que as narrativas todas revelam uma visão macabra da brutalidade moderna, resvalando na discussão a respeito do abjeto na obra fonsequiana, que, a propósito, está completamente tomada por categorias dessa natureza: a violência deflagrada, a escatologia, o erotismo escabroso, cruel e também violento - tudo isso funcionando como um mecanismo do autor a evidenciar que há, na vida cotidiana e contemporânea, uma sensação de incomunicabilidade intransponível e nítida hipocrisia como sustentáculo das relações sociais.
Enquanto o Estado batia os punhos na mesa vociferando nesta época (anos 70), que não havia "crime organizado" no Brasil, Rubem Fonseca demonstrou o contrário, mas o Estado ditatorial é idiotizado em grau máximo e irreversível.