spoiler visualizarmilkshakespeare 11/06/2024
As faces do feminino em Alencar: a profana e a santa
É impossível pintar um retrato de alguém sem tons claros e escuros ou fotografar uma face sem o uso da luz, mas também sem o uso da escuridão. Rembrant nos mostrou isso nas artes clássicas, assim como outros pintores do Barroco. Já na literatura, quem faz isto é Alencar quando, nesta obra, conta a história de Lúcia.
Este foi o primeiro romance urbano que li do autor e confesso que foi uma grata surpresa, além da única obra que até hoje me levou às lágrimas. Sua essência é urbana exatamente por esse motivo: ela exprime, à sua forma, o choque da época diante do crescimento das cidades, justamente com os problemas sociais que vieram desse crescimento. Muitos desses problemas, especialmente a prostituição, estavam mascarados na erudição, nas festas e bailes da alta sociedade: bastava raspar essa tinta brilhante para ver as vidas destruídas, almas desesperadas e mentes confusas como a de Lúcia, uma prostituta de luxo.
Lúcia é uma prostituta diferente: assim que se apaixona pelo amante, ela o abandona e não o aceita mais, ainda que este a ofereça a maior das fortunas. Este estranho comportamento é o seu grande enigma, mas também é interpretado por todos como um mero capricho até a chegada de Paulo, o amante - um homem pobre, simples - que ela não consegue dispensar como os outros. Paulo, o narrador da história, também é citado como o criador e redentor de Lúcia, fazendo uma clara referência a narrativa bíblica do profeta Oséias. Apesar de profundamente humano, ele é o criador de Lúcia como o seu pintor, o seu artista, o homem que a eterniza e retrata o que ninguém, a não ser um artista, seria capaz de ver e recriar em uma obra: a sua alma. O relacionamento íntimo e complexo de Paulo e Lúcia traz à tona o seu lado mais sombrio e a sua luz, a luta interior entre a carne - no corpo que é usado como um objeto sexual, anseia o material e o passageiro - e o espírito - na alma que se reconhece enquanto essência, como instrumento divino, destinada ao sublime e à eternidade.
É impossível pintar um quadro sem claros e escuros, assim como escrever sobre um tema tão espinhoso e tão atual, mas com a sensibilidade e delicadeza de uma rosa, sem tocar um leitor sensível ou deixar de escandalizar uma sociedade hipócrita que promove a indústria do sexo - ao mesmo tempo que apedreja pecadores como Lúcia -, como aconteceu na época com o autor, pois Lúcia é o personagem que traz à tona e para luz a realidade trágica que se esconde na sombra, na esperança de transforma-la de todo através do gesto de reflexão de sua imagem.