spoiler visualizarbruprupru 02/05/2024
Senta que lá vem blablabla...
O que mais causa estranheza ao leitor moderno, além das óbvias diferenças de costumes e morais entre as épocas, é o fato do personagem titular mal aparecer durante as mais de quatrocentas páginas da obra. Durante a maior parte da narrativa, o cavaleiro de Ivanhoé ou permanece incógnito, ou acamado por severas feridas. A chave para superação desse estranhamento é entender que Ivanhoé é causador da narrativa, mas não seu maior foco.
Passada essa não tão agradável primeira impressão, o leitor poderá se deliciar em um desenrolar belamente escrito de grandes aventuras. Imagino que foram esse tipo de obra floreada e sofisticada que levou o famoso Afonso a se tornar o ainda mais famoso Dom Quixote. E eu não o culpo por isso, pois, se o leitor puder suspender suficientemente suas crenças e visões modernas, será transportado para um mundo magnífico.
Todavia, o autor não criou uma obra meramente para entretenimento. Mesmo que a precisão histórica seja bastante relaxada, penso ser o foco da obra as personagens e não seu tempo. Através do prior Aymer e do templário Brian, vemos a decadência das instituições religiosas; do príncipe João e seus cortesãos, o governo interessado apenas em seu bem pessoal; de Cedric, a população sofrida e patriótica a espera de uma salvação; de Athelstane, o restante da nobreza fadado a desaparecer; e de Ivanhoé, o símbolo do bem pacífico e da união.
Também aponto para a diferença entre o amor de Wilfred de Ivanhoé e Lady Rowena (puro e correto) e do templário Brian e Rebecca (desonroso e errado). O primeiro casal alimenta seu afeto desde a infância e é casto. O segundo casal se conhece em situação adversa e ocorre por mera luxúria (somente pela beleza de Rebecca), além de ser um amor entre um cristão (considerado superior) e uma judia (considerada uma raça maldita e abandonada). Em algumas épocas da humanidade, não havia o período de corte ou flerte como atualmente; por isso, causa tanta estranheza esse amor súbito. Mesmo que Rebecca e Brian tenham conversado tão poucas vezes (duas, no máximo), o templário se mostra mais do que disposto a abdicar de tudo pela amada. Isso me faz pensar que seu afeto era mais profundo que mera atração. Para a época que foi escrito e no seu próprio contexto histórico, Brian é um homem louco; mas, na minha visão moderna, tudo que os separa é um odioso preconceito. Preconceito esse que também parece ser contrário às opiniões do autor que, ao mesmo tempo que escreve estereótipos e estigmas sobre judeus, não deixa de os humanizar. A personagem Rebecca é a única mulher com algum protagonismo, isso é, demonstra força de caráter além de beleza e castidade, como Lady Rowena.
Devo, porém, dizer que não é uma obra isenta de defeitos: primeiro, não poderia haver personagens e situações mais irreais (por isso é necessária uma grande suspensão de crença); segundo, o personagem de Ivanhoé é fraco; terceiro, há um imenso tour-de-force que nem o maior adorador dessa obra pode desconsiderar; quarto, a resolução do maior conflito é fraquíssima, o final parece ter sido escrito às pressas.
Ademais, é uma leitura tipicamente gótica: há muitos castelos sombrios, brigas entre cavaleiros, intrigas e diálogos lindos. Não leia visando uma profundidade machadiana, mas também não pense ser uma obra rasa.