Erick 02/04/2021Locke e a propriedadeO filósofo inglês John Locke possui destaque na filosofia política do século XVII. Toda sua produção intelectual tinha como intenção uma intervenção nos fatos políticos de sua época. Entre o temas que ele tratou estão direito natural, a propriedade privada, o pacto que funda a sociedade e o direito a resistência contra a tirania. Este seu ‘Segundo Tratado sobre o Governo’ dialoga intimamente com o contexto político da Inglaterra e as tensões entre a família Real e o Parlamento.
O século XVII na Inglaterra foi marcado pelo conflito entre as forças monárquicas de um sistema feudal, em consonância com as casas reais de toda europa de um lado, e de outro, uma classe econômica que via na política sua válvula de escape para estabelecer uma sociedade por nascer, com novos valores e novas formas políticas, como liberdade de livre comércio e a democracia representativa vinculada a monarquia parlamentar.
Era necessária uma forma de governo que legitimasse a atuação dessas novas forças econômico-sociais. De fato, o pano de fundo desse livro é a constituição do poder político e a legitimidade do governo. É interessante notar como toda argumentação de Locke no Segundo Tratado – assim como a articulação de seus conceitos – tem como objetivo primordial a preservação da propriedade. O pacto social possui como substância “evitar os inconvenientes que perturbam a propriedade dos homens no estado de natureza” (p. 94). Isso porque, para ele, a propriedade é um direito natural, entendida como “a vida, a liberdade e os bens”. Após a instituição da comunidade, a primeira lei positiva é o estabelecimento do poder legislativo, que formulará as leis civis com o intuito de preservar a propriedade. Por isso, a razão se ser do estabelecimento da sociedade civil é a preservação da propriedade.
Locke desenvolve a diferenciação entre propriedade privada e poder público. No entanto, o poder público só possui legitimidade após o consentimento da comunidade, da associação de homens livres, enquanto a propriedade "não depende, para ser legítima, de um contrato. Não é, portanto, uma instituição da sociedade, mas uma condição natural".
Locke fala em condição natural para examinar a passagem do estado de natureza para a sociedade civil – o que em filosofia chamamos a ‘mitologia contratualista’. No estado natural, segundo Locke, a principal característica é a indiferenciação de poder, ao passo que não há um juiz comum e imparcial. Dessa forma, cada homem age conforme sua vontade, tem o poder de agir sem depender da autorização de ninguém. Não há possibilidade de proteção à propriedade do indivíduo, pois não há a quem apelar. A exposição de um estado de natureza é uma tentativa genealógica de identificar a origem do poder político.
Ao instituir-se a comunidade e estabelecer um poder legislativo, o homem abdica de sua liberdade natural para participar da liberdade civil. A autoridade política tem o poder de formular as leis positivas e a força para julgar as ações dos homens. Dessa forma, a lei submete todos os habitantes para garantir maior liberdade possível. “Ninguém pode na sociedade civil isentar-se das leis que a regem”. (p.76)
No segundo Tratado, Locke desenvolve uma noção particular de propriedade, diferente de outros teóricos da filosofia política, como Hobbes ou Rousseau. O primeiro acredita que a propriedade só existe no estado civil, e que é uma criação do Estado, não constituindo num direto natural do homem. Logo, podemos dizer que no estado de natureza a questão da propriedade é inexistente. Já para Rousseau, a propriedade é anterior ao contrato, mas não é um direto natural, já que ele entende o estabelecimento da propriedade privada como a origem da desigualdade entre os homens. Locke assimila sua ideia de propriedade com a subsistência do indivíduo, ou seja, além de constituir um direito natural, o homem tem o dever de ocupá-la para poder sobreviver.
“Aquele que se alimenta das bolotas colhidas debaixo de um carvalho ou das maçãs apanhadas nas árvores da floresta, com toda certeza delas se apropriou para si. Ninguém pode negar que lhe pertença o alimento. Pergunto então: Quando começaram a pertencer-lhe? Quando as digeriu? Quando as comeu? Quando as cozinhou? Quando as trouxe para casa? Quando as colheu? E é evidente que, se a colheita, de início, não as faz dele, nada mais poderia tê-lo feito” (p.52).
A partir da reflexão acerca da natureza da propriedade, pode-se encontrar uma tensão no pensamento de Locke na passagem do direito à subsistência ao direito à propriedade privada, pois:
Locke atribui à mera coleta de um fruto uma dimensão moral e legal, passando da ideia simples de captura de um objeto natural à noção complexa de propriedade. Não há um único argumento para justificar essa passagem. De fato, Locke desenvolve uma teoria da ocupação. A compreensão de Locke de um estado de natureza em que as coisas eram consideradas res communes o levava ao processo de individuação da propriedade, enquanto o trabalho que a lavra seria o fundamento dessa individuação.
A ocupação, isto é, a mera posse, que no caso da terra – o bem por excelência – podia ser expressa significativamente com uma simples cerca, valia para transformar uma coisa de ninguém em propriedade de alguém, mas não parecia igualmente apropriada para transformar uma coisa de todos em coisa de alguém.
Locke se refere ao trabalho, enquanto capacidade de transformar a natureza, como o fundamento da individuação da propriedade. Com isso, podemos estabelecer que a extensão da propriedade é correspondente à expansão do trabalho. Porém, segundo o princípio da liberdade, “cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa” (p.51). Logo, cada indivíduo, conforme sua liberdade, pode vender sua força de trabalho. Daí se segue que quem tem mais empregados, tem mais propriedade. Dessa forma, a extensão da propriedade, que havia sido limitada em favor do bem comum, com o advento da reserva de valor e a possibilidade de contratar empregados, fica ilimitada.
Para Locke, ao trabalhar e produzir valor, principalmente na terra, cumpre-se o preceito divino de se apropriar da natureza, concretizando, dessa forma, uma ética protestante. E, ao acumular reserva de valor (dinheiro), não se pratica nenhuma heresia, ao contrário, exerce-se sua liberdade.
A partir dessa teoria da propriedade, Locke articula mais um conceito importante da Inglaterra no século XVII, o direito à resistência, intimamente ligado ao direito à propriedade. Para ele, é a violação da propriedade (a vida, a liberdade e os bens) que funda o direito à resistência. Foi apenas quando a dinastia Stuart iniciou a interferir na propriedade dos bens dos habitantes – na forma de aumento de impostos, e restrição à liberdade religiosa – que os súditos se viram no direito a resistir ao tirano.