MatheusPetris 27/03/2021
Construindo Castelos de Areia
Se a intenção desses escritos foi a confissão ou a literatura, se são verossímeis relatos de uma pré-adolescente ou a ficcionalização do final do século XIX feita por uma mulher madura, pouco nos importa a resposta. Independente disso, é nesta estrutura que se constrói sua genialidade, mas também sua limitação.
Helena, a criança inquieta e risonha, que nos relata seu dia-a-dia entre os anos (1893, 1894 e 1895), evidencia não só um processo de amadurecimento, ingenuidade, altos e baixos de uma perspectiva individual-subjetiva, como também um panorama histórico, social e econômico de nosso país e, principalmente, de Diamantina.
Dentre os três anos de vida que são abordados, é perceptível notar uma mudança nos anseios e perturbações de Helena. Seu amadurecimento vai se desenhando e sendo evidenciado através destas sutilezas; suas dúvidas, não apenas comportam sua individualidade, mas se expandem e vão permeando suas relações; sua graça e sua personalidade cada vez mais forte, renitente. Amadurecendo ou não, sua imaginação é sempre fértil; sua puerilidade e prazer na “construção de castelos”— imaginar, ficcionalizar situações mentalmente — parece progredir para uma espécie de fuga, como também de afago consigo, um afeto em busca de calmaria.
Se as contradições estão presentes do início ao fim dos relatos, é por edificarem um material dialético extremamente crível de um espírito fervilhante, efervescente. Exemplifico. O racismo que permeia toda a narrativa, é muitas vezes questionado por Helena, seja em gestos ou em pensamentos, contudo, são também os mesmos gestos e pensamentos que os praticam. Conscientes? Longe de querer entrar na psicologia das personagens (se é que as são), mas podemos captar uma influência da cultura escravagista em muitos detalhes, sejam eles em diálogos, em aspectos econômicos, ou mesmo no próprio ambiente social da cidade.
O mesmo acontece com a religiosidade de Helena e de algumas personagens; pois, como ponto comum e fundamental da sociedade da época (e, em certa medida, também da nossa), ela perpassa toda a vida cotidiana da cidade e, claro, sempre transmitida de geração em geração. O que não significa que não possa ser questionada. É justamente este um dos tantos pontos de ebulição que faz de Helena tão instigante. Ele parece nunca acatar, nunca mastigar algo, sem antes, sentir cada movimento de sua digestão. E se precisar vomitar o alimento, vomitará sem o menor receio.
Independente do cansaço gerado por alguns relatos repetitivos e muitas vezes sem substância, a leitura flui de modo orgânico, como se Helena estivesse ao nosso lado, contando suas historietas. Talvez, nesse engessamento de uma estrutura pouco instigante, é que se encontre uma rachadura, louca para se estilhaçar, se livrar da limitação e trepar na primeira árvore que encontrar.
O humor, presente do início ao fim, é muitas vezes surpreendido com a morte, sempre à espreita, ronronando pela cidade. Nesta lama que nunca escapa, se encontra também as dificuldades econômicas, seus percalços. Perturbações estas, que nunca impedem um sorriso esperançoso.
Por fim, nota-se o quanto a vida simples era o que mais atraía Helena. Sua alegria, sempre consistiu na liberdade, na tranquilidade. Se “vadiava”, como sempre gostavam de adjetivá-la (inclusive, ela própria), era por não se conformar, por não aceitar tantas imposições sociais. Ela queria apenas viver ao lado de quem amava. Somente. Parece pouco? O pouco é o que importa. Tudo isso, que conversa diretamente com o fim da nota à 1º edição escrita pela autora: “A felicidade não consiste em bens materiais, mas na harmonia do lar, na afeição entre a família, na vida simples, sem ambições — coisas que a fortuna não traz, e muitas vezes leva.”