Ca Melo 14/06/2019Eu quero muito mais livros com protagonistas negrasRepresentatividade importa sim
De uns tempos para cá eu tenho procurado livros, filmes e séries que trouxessem personagens negros no protagonismo. Pode ser besteira, mas depois que você se vê cada vez mais reconhecido como uma pessoa não branca e sente orgulho de seus traços, fica impossível ignorar a falta de personagens que lhe representam. Eu fico extremamente feliz em ver que há autores negros, e principalmente autoras negras brasileiras, que têm desenvolvido histórias a partir de suas experiências, e contribuindo dessa forma para uma literatura mais igualitária. Conversando com a Tay durante a leitura, e tratando especificamente da questão da representatividade, a autora me disse que trazer uma protagonista negra era ao mesmo tempo tratar das questões de gênero e raça, esta última principalmente por ser algo indissociável.
Isso significa que até os dias atuais, falar sobre a experiência do negro na sociedade é também tratar do racismo. Elizabeth sai de Campos de Goytagazes, região do interior do Rio de Janeiro para São paulo, com o intuito de cursar jornalismo em uma das melhores universidades do país. Além de sair da zona de conforto para encarar uma nova fase de sua vida, Elizabeth precisa lidar com o racismo nas pequenas obervações no campus da faculdade:
Não precisei de mais do que duas semanas de aulas para perceber que a quantidade de negros por turma é pequena e algumas aulas não contam com nenhuma pessoa negra além de mim. Não dá para dizer que isso não é intimidador, mas prefiro olhar pelo lado do desafio. Talvez eu seja mesmo a única negra aqui, agora, mas eu se eu não estivesse aqui, se não tentasse conseguir esse espaço, outras pessoas poderiam achar que esse lugar não é para elas. Já senti isso em relação a muitas outras coisas, e não é um sentimento legal.
Ao desenvolver a personagem de Elizabeth a autora também discute outras questões referentes à mulher negra, principalmente em relação aos seus traços o que bate de frente com o ideal de beleza desejado que muitas vezes não considera a mulher negra, com cabelos crespos como padrão:
Estou cansada de achar que foi uma grande sorte nascer com esses olhos e o nariz da mamãe, já escutei tantas vezes “Que sorte que veio com esse olho”, “Nossa, você é tão linda, seu olho é incrível”, “Levanta a mão e agradece pelo seu nariz ser fininho”. Não gosto disso (…) E eu não gosto de ser objetificada pelo meu “corpaço”, não gosto de ouvir que eu tenho “a cor do pecado”, odeio que as únicas coisas que chamem atenção em mim positivamente sejam meus olhos claros e meu nariz fino, ou seja, meus traços de branca.
Simultaneamente há também uma visão um tanto estereotipada do corpo negro, como o sociólogo Stuart Hall destaca em seu ensaio The spectacle of the other ao trabalhar as questões das representações dos negros em campanhas publicitárias. Ele menciona tanto a visão sobre o corpo forte dos atletas, até as animalizações, como também a sexualização dos genitais masculinos.
As pessoas já olham para mim e dizem “Ai sua cor/seu cabelo são lindos, eu acho um dos tons de pele mais bonitos e expressivos”, como se estivessem admirando ou um animal no quadro do Louvre ou um animal no zoológico e não ser um humano normal.
No curso de jornalismo Elizabeth também precisa aprender a lidar com as grandes diferenças que encontrará na sua profissão, já que a realidade não é muito promissora. Além da falta de profissionais negros em número de igualdade ao de pessoas brancas, muitos enfrentam ataques racistas pela internet, um meio que acaba por empoderar esse tipo de atitude, como no caso da jornalista Maria Julia Coutinho:
Existia uma barreira em ser telejornalista negro no Brasil, e se você não fosse a Glória Maria, certamente não tinha o direito de estar em destaque ali. Não que Glória não sofresse ataques, não é isso, mas pelo tempo que ela tinha de carreira, era fácil ouvir, “Mas tem a Glória Maria” (…) Como se o problema pudesse ser resolvido como uma única pessoa quando, na verdade, outras jornalistas negras como Joyce Ribeiro estavam recebendo críticas ao seu trabalho através da internet. Estaria tudo bem se as críticas fossem construtivas, afinal, ninguém nasce perfeito. Está tudo bem criticar o trabalho das pessoas, mas em momento nenhum consegui encarar “Esta negra chata, vesga, gaguejando na bancada do jornal é deprimente, fora Joyce Sebastiana crioula, volta para o tronco”, como uma crítica construtiva.
Desenvolvimento da trama
Como eu mencionei anteriormente a história de Elizabeth nesse nova jornada acaba por trazer demais aspectos na trama. Somos inseridos na aventura de um novo começo, a cidade de São Paulo como cenário, um lugar completamente novo, com novas interações, o início da vida adulta longe da família, do lugar de refúgio e porto seguro, as aspirações profissionais e acadêmicas. Tudo isso envolto de diversas referências a filmes, séries e músicas, aliás, esse é um dos pontos centrais da trama, visto que em cada capítulo há referência a uma canção, formando uma trilha sonora com músicas de Legião Urbana e Los Hermanos, e mais alguns outros.
Eu quero mais não se limita apenas à questão de raça e gênero, mas também em relação aos relacionamentos com a família, novas amizades e relacionamentos amorosos. Ao mesmo tempo em que a escrita da Tayana Alvez é envolvente e fluída, por conta dos acontecimentos me vi obrigada a fazer algumas pausas para respirar bem fundo.
A autora trabalha de uma maneira que me tirou da minha zona de conforto e me fez questionar meus princípios como verdade única e absoluta. Isso porque eu fiquei muito intrigada com a relação entre Elizabeth, Breno e Joaquim, nunca me vi nas situações retratadas e por isso senti muita dificuldade em entender as atitudes da protagonista, chegando mesmo a ter uma certa irritação pelo seu modo de agir, o que foi acentuado pela narrativa ser majoritariamente sob a perspectiva dessa mulher. Mas conforme a leitura foi progredindo eu fui entendendo que pelo fato de eu não ter vivenciado experiências semelhantes eu não teria condições de julgar Elizabeth. É bem aquela coisa, só quem passa por uma determinada situação sabe bem o que está sentindo, e quem está de fora consegue ter apenas uma visão superficial.
Sem me aprofundar em detalhes na intenção de evitar spoilers, a questão é que entre Joaquim e Breno há situações extremamente complexas. Um deles é o melhor amigo de Elizabeth desde sempre e seu primeiro amor, mas que devido a diversos fatores acabaram se separando e mantendo uma amizade muito próxima, como se o relacionamento amoroso não tivesse de fato esclarecido, devido à forte atração e sentimento que sente um pelo outro. Por outro lado, há também o nascer de uma novo relacionamento, alguém que se mostra amigo, cúmplice, mas que com o passar do tempo se mostra tóxico, minando a personalidade de Elizabeth.
Construção de personagens
Até determinado ponto a gente acha a relação da Elizabeth com seu novo namorado muito normal, isso porque além de termos a perspectiva dela, a construção dos personagens colaboram para nos colocar em dúvida. A autora constrói seus personagens não de maneira rasa ou estereotipada, isso significa que, nós como seres humanos temos diversas camadas, não somos 100% “bonzinhos” ou 100% “vilões” o que nos deixa questionando as atitudes de todos os personagens.
Até certo ponto consideramos o novo namorado um amor, afinal ele é romântico, amigo, cuida e se preocupa com ela. Por isso, achei extremamente importante a inserção de diálogos entre Elizabeth e suas amigas Carol e Aline, porque no momento em que elas discutiam algo saíamos da visão da protagonista para entender melhor o tipo de relacionamento e não achar normal ou naturalizar atitudes completamente abusivas. E ainda, ao mudar o foco narrativo nos últimos capítulos podemos compreender melhor as consequências de um relacionamento abusivo na vítima, suas mudanças de humor e desenvolvimento de alguns sinais de tensão por qualquer situação, levando a choros compulsivos até então sem nenhuma justificativa.
Alguns personagens me deixaram tão intrigada que eu queria conhecer mais deles, especificamente a Aline e o Paulo, colega de quarto e irmão de Elizabeth, respectivamente. Suas histórias me deixaram ansiosa para conhecê-los mais a fundo, conhecer seus passados para tentar compreendê-los melhor, quem sabe a autora se convença a criar mais conteúdo desses dois, eu ficaria extremamente grata. E sim, isso é uma indireta mesmo! Hahaha
(((Resenha completa no blog))
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https://abookaholicgirl.wordpress.com/2019/06/14/resenha-eu-quero-mais-de-tayana-alvez/