gaspar 16/05/2023
A imitação da rosa
Eternizada e considerada atualmente a autora brasileira mais popular e traduzida no exterior, Clarice Lispector publica em 1960 em sua coletânea "Laços de Família" - uma das mais importantes de sua carreira, recebendo, inclusive, Prêmio Jabuti de Literatura -, "A imitação da Rosa", um dos contos mais conhecidos da escritora. Suas obras se consolidaram, ao longo do tempo, como uma grande base para a literatura brasileira. Ela nos apresenta, na verdade, grandes retalhos sobre nossa própria vida de maneira complexa e estranha, provocando epifanias e reflexões sobre nosso eu interior.
A narrativa desse conto nos apresenta Laura e Armando, um casal sem filhos, porém com uma rotina relativamente comum, principalmente da década de 50, onde a mulher era submissa ao homem e os afazeres de casa. Laura é apresentada como uma mulher de pele morena, cabelos marrons e olhos marrons, porém, em meio às apresentações, é notório o estranhamento em relação a esta personagem. Retornando de um certo tipo de campo de saúde, possivelmente um hospital psiquiátrico (fato que não é dito abertamente no conto, mas nos apresenta certas alusões a tal fato), Laura espera Armando chegar do trabalho para irem jantar com um casal de amigos em comum, Carlota e João. É apresentado, portanto, sua relação com Carlota, que, apesar de amigas, fica evidente a grande diferença entre as personagens. Enquanto Laura era lenta e cuidadosa, Carlota era ambiciosa, risonha e aventureira. Adjetivos como original e ?um pouco estranha? eram utilizados por Laura para se referir à Carlota.
De maneira inquieta, Laura devaneia em pensamentos a todo instante ao decorrer da história. A escritora nos teletransporta a momentos de seu passado, repartindo-o em partes como um processo analítico, nos fazendo refletir sobre o passado de Laura. Em meio a esses pensamentos, uma coisa chama atenção de Laura: as rosas que havia comprado para presentear sua amiga Carlota. Ela deixa claro no conto o quão lindas eram, e que, apesar de tão belas, nunca poderiam ser dela, ou melhor, ser ela, ?porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se ?ser?? (Lispector, 1998, p. 31). Apesar de se tratar somente de uma rosa comum, é capaz de formularmos diversas interpretações. A rosa para Laura é como uma metáfora. Clarice nos traz sentimentos agridoce, de maneira mais fria possível. A relação de Laura com essa rosa é justamente a necessidade e o anseio pelo passado. É um sentimento que vai além do simples fato de ser uma bela rosa. A rosa pode se tratar de um sentimento, um objeto, um alguém, uma situação? Algo que procuramos substituir, ou melhor, imitar.
O estado mental de Laura é bastante recorrente ao decorrer do conto, é capaz fazermos uma singela comparação com a Laura do passado. É notório o quanto que ela se receava com momentos de sua vida. "Ela bem se lembrava das colegas do Sacré Coeur lhe dizendo: 'Você já contou isso mil vezes!', ela se lembrava com um sorriso constrangido. Voltara tão completamente: agora todos os dias ela se cansava, todos os dias seu rosto decaía ao entardecer, e a noite então tinha a sua antiga finalidade, não era apenas a perfeita noite estrelada" (Lispector, 1998, pág 25). Essa série de preocupações sobre o seu passado pode indicar períodos traumáticos, conturbados ou até mesmo sobre internações psiquiátricas. Além disso, cabe ressaltar as menções ao seu médico em suas sessões durante o livro. Decorrentemente ela se referia aos conselhos que seu médico lhe falara.
Então, em meio aos devaneios na cabeça de Laura, as rosas lhe chamam bastante atenção. Pensou, nesse meio tempo, em ficar com as rosas, afinal. Porém hesitou, não era do feitio de Laura presentear alguém, e isso significava muito para ela, principalmente para garantir a todos que estava ?controlada?. Ao decidir, portanto, continuar com a ideia de presentear Carlota, há um certo estado de ?despersonalização? em Laura ao sentir que perdeu algo que jamais lhe pertenceu, um certo tipo de gatilho de algo que ela nunca conseguiu, ou conquistou. Tal ponto é extremamente comum nas obras de Clarice, ela surpreende e prende o leitor de maneira sufocante. Laura se considera estranha a si mesma, de uma forma angustiante e pesada.
No final do conto, Armando, seu marido, chega em casa. É notório o medo e a insegurança que Laura possui, principalmente ao tentar ser a mulher perfeita, ou melhor, ideal para o esposo. A necessidade e o desespero se alastra, e no suspiro, calma e suave, ela diz para ele: ?Voltou, Armando, voltou?, como se referisse a algo que a perturba a muito tempo, ao incômodo de vida. ?Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. Com timidez e respeito, ele a olhava. Envelhecido, cansado, curioso. Mas não tinha uma palavra sequer a dizer. Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como num trem. Que já partira.? (Lispector, 1998, p. 36).
Tudo da Clarice é difícil, a leitura é densa, pesada, e as palavras cansam a mente. Ela consegue ser intensa e provocar as mais altas reflexões perdidas nos nossos próprios "eus". Sua escrita é melancólica e intensa, e nesse conto não foi diferente. Ela apresenta o cenário em lar doméstico, protagonizado por personagens que fogem desse padrão de domesticidade, Laura é exemplo disso. Lispector apresenta a realidade frenética e errônea na necessidade de se encontrar finalmente, na vontade de querer se enquadrar em padrões fictícios que tendem a nos ditar na sociedade. A rosa, como citado anteriormente, é justamente essa metáfora de querermos ser aquilo, mas que não conseguimos. A necessidade de ser ideal, nos moldarmos para se encaixar em algo/alguém. Laura é isso. Ela é o retrato da alma inquieta de muitas pessoas.