Erick 02/04/2021sobre os estudos queerOs estudos queer revelaram a brutalidade impositiva dos chamados “gêneros inteligíveis”, que exigem uma coerência e continuidade entre desejo, sexo, gênero e práticas sexuais. A tentativa de se categorizar os gêneros, para depois estabelecer uma relação de continuidade entre o sexo biológico, o gênero social, o desejo e as práticas sociais e sexuais deve ser entendida como impositiva, como parte das estratégias das relações de poder que sustentam uma sociedade patriarcal e desigual socialmente. O gênero deve ser interpretado antes como uma construção política que busca legitimar essa estrutura, a partir de sua naturalização e de “atos performativos discursivamente compelidos”.
Por isso, o surgimento dos estudos queer enquanto negação dessa estrutura direciona-se no sentido de superá-la. A partir do pressuposto de que “são as experiências que constituem os sujeitos e não os sujeitos que têm experiências”, podemos estabelecer pessoas intersex e trans, por exemplo, como subversivas enquanto negação dessa configuração.
A reflexão imposta a partir de pessoas intersex nos coloca em situação de problematizar toda nossa compreensão de identidade no interior dos processos de normalização e controle social dos corpos. O nascimento de uma pessoa da qual não se possa determinar o sexo biológico recoloca o debate sobre o que é um corpo sexuado, assim como o que determina os atributos de homem e mulher. Esse paradoxo identitário não deve ser restringido ao discurso científico, nem tampouco ao filosófico, mas considerar como cada pessoa relaciona-se com sua intimidade enquanto ser sexuado.
Segundo Butler, a categoria queer pode ser entendida como aquela que questiona e subverte as noções padrões de sexualidade. Ela desconstrói e pluraliza as identidades de gênero. O corpo, mais do que um espaço a ser preenchido de significações culturais, deve ser interpretado como um interposto político.
A naturalização de identidades deve ser constantemente problematizada, assim como a reificação dos gêneros. A produção dos saberes que se pretendem científicos, passando pela psicanálise, sexologia, psiquiatria, biologia etc, direciona-se nesse sentido. Sem aprofundar-se na questão da performatividade desses saberes, a naturalização a que se submeteram os conceitos de homem/mulher nas ciências é sintoma de processos históricos e sociais com profundos efeitos.
A sociedade patriarcal em que vivemos normatiza comportamentos sociais de forma que atributos generalistas são considerados naturais em sua manifestação. Dessa forma, liga-se ao gênero feminino uma série de atributos referentes a maternidade, cuidados domiciliares. sensibilidade; enquanto ao gênero masculino associa-se os de virilidade, responsabilidades econômicas e atividade sexual. Essa última característica – atividade – é entendida como prioritária para uma construção social do gênero enquanto continuidade do sexo biológico. Apenas um homem ativo sexualmente é marcado pela masculinidade inerente a reificação do gênero. Da mesma forma, o ser passivo sexualmente não pode ser associado ao masculino, devido a uniformidade da coerência interna que a legitima.
A produção de uma verdade sobre o sexo tem a intenção de excluir o surgimento de multiplicidades e a diferença que deveria caracterizar qualquer manifestação de desejos. Quando se tenta impor um imperativo, ainda mais quando se trata da sexualidade – uma das principais formas em que o ser se concretiza socialmente -, impede-se que novos modos de ser emerjam.
Vivemos numa sociedade heteronormativa, onde a determinação congênita do sexo é mediada por discursos compulsórios de reconhecimento e exclusão. A ciência é permeada por preconceitos da razão reificada, e o gênero enquanto construção binária é um dos pilares dessa organização.
O conhecimento científico pode ajudar a decidir, mas são os ditames sociais e as crenças no gênero que definem o sexo(...) os protocolos médicos são atravessados por questões de gênero, sendo também misóginos, homofóbicos e heterossexistas. (p.157)
A postulação de como o corpo é sexuado inscreve-se nos estudos queer fora do âmbito da coerência interna do sujeito. O pressuposto cissexista de que o desejo sexual deve ser restrito ao corpo biológico é ignorado. O corpo deve ser entendido não como causa, mas como ocasião da realização do desejo. A descontinuidade é o princípio estruturador de identidade subversivas. A relação entre corporalidade e manifestação do desejo é colocada em novos termos, não-normativos, livres para romper a inteligibilidade estabelecida.
A lógica social que determina o modo de funcionamento da sexualidade deve ser constantemente questionado, pois eles não abarcam todos os sujeitos do desejo e excluem da vida social aqueles que buscam exercer o direito ao corpo, mas apenas subordinam-se ao modelos médicos-jurídicos, de modo a interditar novas formas de gozo que subvertem o binarismo.
Talvez a principal contribuição dos estudos queer seja a desconstrução do pressuposto da naturalidade heterossexual da manifestação do desejo. Teóricos como Gayle Rubin, por exemplo, acreditam que as s ubstâncias homem e mulher marcam os estudos de gênero de forma a desprezar as demais probabilidades do desejo. Para ele "antes da transformação de um masculino ou feminino biológicos em um homem ou mulher com traços de gênero, cada criança contém todas as possibilidades sexuais acessíveis à expressão humana" (p.112). Proposta endossada também por Freud, que tematiza a bissexualidade inerente à condição humana e depois barrada pela dimensão simbólica que possibilita que apenas a manifestação hetero do desejo sexual seja aceita.
Na verdade, a questão da continuidade dos gêneros inteligíveis nos remete para uma crítica à metafísica da substância, concepção de que há um eu causa do pensamento e, por assim dizer, do desejo enquanto manifestação do sexual. Essa tradição, cujo ápice é o Cogito de Descartes, está inserida na lógica da identidade substancial, essa crença desmedida na linguagem que afirma que existe um eu substancial de onde se derivam as características do sujeito - sendo o sexo, a estruturadora. Deve-se estabelecer esse idealismo como alvo de uma crítica incisiva à ontologia de gênero estabelecida nos marcos da heteronormatividade, com vistas a dessubstancializar os sujeitos.
Desnaturalizar essa unificação do eu corporificado significa questionar a coerência interna. A categoria de pessoa transposta na linguagem abre caminho para um conceito ontológico que estrutura a divisão dos seres em sexo. As substâncias, figuradas por homem e mulher, são entendidas como “coerência contigentemente criadas pela regulação de atributos”. Assim “o fato de que ‘ser’ um sexo ou um gênero é fundamentalmente impossível”. (Butler, p. 28)
Deve-se conceber essa categoria linguística do sexo como criada pela heteronormatividade que exige um eixo desejante e heterossexual. Devemos problematizar todas as categorias normativas, consideradas parte da ordenação compulsória de gêneros inteligíveis: “Quando não problematizados, as afirmações ‘ser’ mulher e ‘ser’ heterossexual serem sintomáticas dessa metafísica elas substâncias do gênero. Tanto no caso de ‘homens’ como no de ‘mulheres’, tal afirmação tende a subordinar a noção de gênero àquela de identidade, e a levar à conclusão de que uma pessoa é um gênero e o é em virtude do seu sexo, do seu sentimento psíquico de eu, e das diferentes expressões desse eu psíquico, a mais notável sendo a do desejo sexual” (p.32) .
De fato, a noção da metafísica da substância opõe-se ao sexo enquanto construção social, repetição de atos e estilização dos corpos. Ela tenta articular-se no espectro na pré-discursividade sexualizante que entende as identidades enquanto naturais, não como construtos. A inscrição do sexo anterior ao discurso tem como intuito excluir da possibilidade da existência das pessoas trans, intersex, assim como de todas pessoas que operam uma ruptura no interior da inteligibilidade. Por isso, para Butler, o recurso ao natural é sempre político.
Político ou biopolítico, levando em consideração que toda dominação social se direciona também a uma dominação dos corpos dos indivíduos. Dessa forma, a biopolítica encerra uma corporalidade normatizada, reconhecida social e juridicamente e que concede uma identidade ao sujeito: o ser que concretiza a coerência entre eu desejante e práticas sociais.
A partir disso, a distinção que pode ser realizada entre interno/externo, a descontinuidade do desejo, a imagem do corpo enquanto espaço a ser significado, nos remete ao caso de Herculine, uma jovem intersex francesa que se suicidou. Ela escreveu um diário sobre suas experiências e as descobertas que essa característica lhe proporcionou. Esse diário foi analisado por Foucault para problematizar a inscrição do sexual no discurso.
O caso de Herculine sugere uma “crítica genealógica das categorias reificadas de sexo”, assim como preconizava Foucault. O hermafroditismo desestrutura as relações binárias de sexo e gênero, impossibilitando a construção de um discurso médico-jurídico da heterossexualidade naturalizada, pois “Herculine não é uma ‘identidade’, mas a impossibilidade sexual de uma identidade. (...)As convenções linguísticas que produzem eus com características de gênero inteligíveis encontram seu limite em Herculine, precisamente por que ela/ele ocasiona uma convergência e desorganização das regras que governam sexo/gênero/desejo”( p.34)
Dessa forma, podemos entender, no escopo dessa interpretação, que identidades subversivas como intersex e trans escapam da forma representativa preconizada pela ontologia de gênero derivada da metafísica da substância. Assim como a representação no âmbito binário de homem e mulher devem ser constantemente problematizadas e colocada num sistema inteligível de expressões de gênero enquanto suposta causa de uma identidade substancial. Nietzsche já preconizava de que “não há ser por trás do fazer, do realizar e do tornar-se”. Portanto, resta reconhecer as mais diversas formas realizar-se enquanto tal, tendo em vista que há um alto preço para se tornar um eu.
No interior das experiências sociais, o processo de reconhecimento é um dos mais conflituosos. Cada tempo histórico possui uma determinada configuração social, que se reflete nas relações de poder e nas formas jurídicas estabelecidas. Nossa legislação atual tenta estabelecer, fundamentada num discurso científico, os sujeitos de representação e de direitos.
Dessa forma, ocorre a produção de determinadas formas de se ser reconhecido e a consequente exclusão daqueles que não se encaixam. Com a sexualidade, a produção desse discurso obedeceu a um dispositivo que se estruturou em torno do que deveria ser permitido ou proibido, atendendo a conjuntura do poder e
as grandes estratégias de saber (p.117). Nesse caso, há um discurso sobre o quê deve ser considerado como um gênero. A medicina tornou a possibilidade da manifestação do desejo numa forma de binarismo, onde homem e mulher são as únicas possibilidades possíveis.
Logo, tudo que emperra essa reprodutibilidade é entendido como nocivo e surge a necessidade de transformar-se num sujeito do reconhecimento. Cada período histórico possui seus sujeitos que buscam algum tipo de reconhecimento, seja pessoal, seja social.Nosso tempo demanda novos tipos de reconhecimento, como por exemplo, os relacionados aos diversos gêneros, que se sentem sub-representados nos diversos meios em que circula uma ideia do que eles deveriam ser de fato.
Por isso que, em seu “Problemas de gênero”, Judith Butler retoma uma tradição que questiona os ditos gêneros inteligíveis, numa perspectiva de problematização da chamada coerência interna e continuidade entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais.
As formas constituídas de poder estabelecem uma regulação sobre como devem manifestar-se os desejos dos indivíduos, e excluem como irrepresentável tudo que escapa a esse dispositivo. Aqui, pretende-se expandir o que é reconhecido como humano e sujeito de representação.
A teoria do reconhecimento recoloca em debate quais os parâmetro que devem ser levados em conta quando se trata de sociabilidade.
A subversão que os sujeitos queer operam no sistema inteligível de compreender a sexualidade humana nos leva a questionar como o poder produz normatizações – exclui subjetividades – e maneja o aparato jurídico, negando direitos civis básicos.
Somente uma política queer capaz de questionar no real essa brutalidade impositiva e reguladora de corpos conseguirá ressignificar o modo como a subjetividade é produzida.