RayLima 13/10/2024
História é memória
Clássico, drama familiar, realismo mágico, ficção histórica. ?A casa dos espíritos? é tudo isso e mais um pouco. Isabel Allende, ao contar a história da família Trueba, com seus personagens irreverentes e suas tramas mirabolantes, vai contar também a história do Chile. Cobrindo quase cem anos de história, passando por eventos importantes da história mundial e mostrando como eles afetaram o país, trazendo os dois lados da moeda: a burguesia e a classe trabalhadora. Como na maioria de seus livros, a história tem também um caráter autobiográfico.
A personagem mais importante, a alma do livro, é Clara, a clarividente. É pelo dom de Clara, que tem uma sensibilidade para ver e sentir coisas que mais ninguém vê ou sente, que o livro tem o nome que tem, e é pelas mãos dela que boa parte do livro vai ser contada. Através de seus ?cadernos de registrar a vida?, Clara narra os acontecimentos mais importantes de sua família, desde os tempos de menina até se casar, ter filhos e, naturalmente, morrer. A narrativa não segue uma ordem cronológica em linha reta, muitas vezes ela avança ao futuro e depois retorna a um ponto no passado.
?A vida é longa e dá muitas voltas.?
O segundo personagem mais importante é o emblemático Esteban Trueba. Um jovem ambicioso, de gênio forte, nascido numa família de renome, mas falida. Esteban vai fazer de tudo para retomar o prestígio e a fortuna dos tempos de glória do passado. É, com certeza, o personagem mais complexo da trama. Nos causa vários sentimentos diferentes e tem um papel fundamental na parte histórica e política do livro. Assim como Clara vê os espíritos daqueles que já se foram. Estebán é atormentado pelos seus próprios fantasmas: remorso, culpa e o medo de perder aquilo que conseguiu com tanto ?esforço?.
?[?] não deveria ter medo dos mortos, mas dos vivos?
Como falei, o livro se encaixa em várias temáticas e a autora consegue desenvolver muito bem cada uma delas. Na parte do drama familiar, vamos ver como se dão as relações nessa família peculiar, repleta de personalidades fortes e diversificadas, cada um com um tipo de loucura. Como em toda família, temos diferentes níveis de relações entre os familiares, mas podemos ver que o amor é o mesmo. Tem intrigas, segredos, brigas, ciúmes. Muitos momentos emocionantes e outros tantos cômicos. A forma como Allende escreve esses personagens é tão verosímil que é como se fossem pessoas reais, que você conhece e convive. Me identifiquei muito, sobretudo, com a relação entre Clara e sua neta Alba. É nesse núcleo que podemos ver também os toques de realismo mágico, como por exemplo, nas ?habilidades? de Clara de prever o futuro através de sonhos ou na aparência incomum de Rosa que tem olhos amarelos e os cabelos verdes.
Na parte da ficção histórica teremos todo o contexto desde a 1° Guerra Mundial até a ditadura de Pinochet. No começo esses acontecimentos vão sendo citados de forma discreta, mostrando os avanços das tecnologias, as disputas de classes, etc. Já na reta final esse assunto será a parte central do livro, sendo um fator decisivo para o rumo de alguns personagens. É interessante perceber a ironia que ao final do livro, os fantasmas da casa não são mais tão importantes, mas sim o ?fantasma do comunismo? que aterroriza a burguesia e é esse medo que faz com que a direita ajude no golpe que leva o país à ditadura.
Mais uma vez Isabel Allende faz eu me apaixonar por sua escrita, se consolidando como uma de minhas autoras favoritas. Foi uma experiência linda e engrandecedora ler esse livro que pra mim é uma obra-prima, um dos grandes clássicos da literatura da América Latina.