Lucas 19/04/2019
O realismo mágico como ponte para uma mensagem crítica social e política
É uma característica própria e peculiar do realismo mágico: o desapego ao tempo e à geografia na construção de uma narrativa viva. A vivacidade desse tipo de obra é palpável: suas linhas exalam cheiros e gostos que não transportam o leitor a um mundo novo, pelo contrário; trazem até ele uma história, que parte de uma substância abstrata para provocar uma forte sensação de realidade, seja por meio da poesia incutida nas entrelinhas ou pela contínua e infinita sensação de "déjà-vu" que são capazes de causar. E quando se fala em realismo mágico, não há como desvencilhar esse movimento literário (que explodiu na América Latina na segunda metade do século XX) da lendária figura do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), o Gabo, que abalou todos os alicerces literários com o maravilhoso Cem Anos de Solidão, de 1967.
A chilena Isabel Allende (1942-) não pode ser comparada sob nenhum aspecto ao gênio colombiano. Provavelmente ela jamais cogitou isso, porque Gabo é inalcançável como escritor nesse segmento, mas Allende (que era filha de um primo direto do presidente chileno Salvador Allende) trouxe ao mundo e especialmente à América Latina um romance com elementos simbolizadores da mítica Macondo e seus "Aurelianos" e "José Arcádios". Isto não a torna tão particular quanto Gabo, mas o seu romance de estreia, A Casa dos Espíritos (1982), é capaz sim de despertar boa parte das mesmas sensações que a escrita de Gabriel García Márquez causa.
A Casa dos Espíritos, diferente do que o nome sugere, não é um romance apenas sobre ocultismo, espiritismo ou mediunidade: é, primordialmente, uma saga de amor, ódio e história, que transpassa várias gerações de duas famílias. A narrativa, que por ser escrita dentro do movimento do realismo mágico não menciona datas ou locais específicos, conta inicialmente a trajetória da família del Valle, rica estirpe da "capital". Os pais, Severo e Nívea, tinham vários filhos, mas Allende descreve apenas duas meninas: a primogênita Rosa e a caçula Clara. A outra família é a de Esteban Trueba, num primeiro momento dedicado filho de Ester, irmão mais novo de Férula, protagonista masculino da obra e, de longe, o personagem mais polêmico da saga.
Isabel Allende usou Esteban inicialmente para descarregar na narrativa uma forte metáfora de lutas sociais, o que fez com que a obra trouxesse consigo uma contundente carga política. Trueba possuía um estilo rígido, próprio de coronéis mais antigos, com fortes opiniões, na maioria das vezes machistas e individualistas. Por meio da propriedade rural da qual era proprietário, Las Tres Marias, a autora monta um cenário de oligarquia política e social, onde Esteban utiliza qualquer mecanismo para defender sua posição social de elementos que estejam abaixo de sua "classe".
Apesar disso, Esteban Trueba, como personagem, não é odioso, até porque é nítido que Allende não escreveu A Casa dos Espíritos como um livro de protesto que se sustenta a partir dos seus ideais truculentos. O protagonista masculino da obra carece de carisma, mas possui camadas complexas que o tornam, no geral, um homem perturbado e solitário, identificadas a partir de seus escritos (a narrativa é, em sua maioria, construída alternando a terceira pessoa com pontuais momentos em primeira pessoa, e o patriarca dos Trueba é o único personagem que assume ares de narrador próprio em várias passagens). A intransigência com que Esteban trata praticamente tudo e todos lhe traz a solidão, indo de encontro a uma das grandes odes das obras de Gabriel García Márquez: poder e solidão sempre serão paralelos.
O comportamento autoritário de Esteban acaba por servir de gancho a uma perceptível mudança na toada da narrativa, que acaba adquirindo um viés mais político no terço final da obra, o que tira um pouco do encantamento criativo que as partes anteriores causam. O livro, que começa com uma intensa sensação nostálgica vai, vagarosamente, cedendo espaço ao dramático e ao trágico, tradicionais em romances de época. Mesmo assim, A Casa dos Espíritos se distancia muito de qualquer definição rasa que suponha que a sua narrativa seja formada apenas por um combate à exploração operária ou que corresponda somente a um manifesto literário que defenda de forma veemente o comunismo. Esse distanciamento é fortalecido por um enfoque mais "real" e menos "fantástico" de um regime totalitário, onde a coação, as torturas e a autoridade exacerbada são as principais ferramentas de um governo desse tipo. São momentos chocantes, mas infelizmente reais: fica muito óbvio que a autora usou do brutal golpe militar chileno de 1973 para finalizar a obra com várias passagens doloridas, mas permeadas com uma mensagem de resistência e amor, capazes de transcender o tempo e as gerações.
Clara del Valle é um contraponto a Esteban, e é a verdadeira protagonista do livro, cujo título advém dos seus poderes sobrenaturais. Seu jeito de ser, ponderado e ao mesmo tempo decidido, cheio de particularidades que não podem ser aqui reveladas, encaixam-se muito bem ao mundo fantástico que a narrativa monta. Se Esteban sempre buscou a companhia e a aprovação de outros, mas sempre esteve verdadeiramente só, Clara sempre foi amada e querida por todos, mas jamais quis de forma direta essa aprovação. Sua mente nem sempre estava ocupada em coisas terrenas, passando boa parte do tempo desenvolvendo e aplicando seus dons espíritas e sofrendo as consequências dos destinos dos que a rodeiam. A Casa dos Espíritos sempre terá motivos para ser lembrado por quem conhece suas linhas, mas a meiguice de Clara, sua força de vontade oculta e seu olhar lúdico para as coisas mais corriqueiras da vida são os maiores estandartes simbolizadores desse primeiro e mais importante trabalho de Isabel Allende.
Livros do realismo mágico são os mais difíceis de serem resenhados. Isso porque trazem um encantamento e uma poesia nas entrelinhas que nenhum outro tipo de obra é capaz de gerar; no entanto, traduzir esse encantamento em uma resenha pode ser uma tarefa perigosa, já que as gerações de personagens se sucedem e várias histórias paralelas vão se construindo. Além de Clara e Esteban, há uma miscelânea de outros personagens fascinantes, mas, por pertencerem a gerações posteriores, sua simples menção pode gerar revelações desagradáveis ao futuro leitor. O que pode ser dito e valorizado aqui são as sensações que Allende provoca, especialmente na morte de personagens importantes e secundários, sempre trazendo consigo alguma oportuna lembrança do passado, que emociona e engrandece ainda mais o passamento. É, possivelmente, algo trivial à maioria dos leitores, mas Isabel Allende é genial como poucas ao relatar a dor da partida de alguém querido com uma mensagem poética que transcende as crenças de vida (ou não) após a morte.
A dificuldade em resenhar se estende a escrever: livros de realismo mágico são (ou melhor, devem ser) os mais difíceis para serem construídos. A narrativa se sustenta num contínuo fluxo de criatividade que, se não apresentar pequenas histórias ou se elas não forem suficientemente audaciosas, tira a sua substância. Uma mulher pura ascendendo ao céu ou outra que traz consigo uma permanente nuvem de borboletas amarelas são elementos fantásticos, mas se não forem desenvolvidos aos poucos, com outras justificativas não menos fantásticas, deixam o texto abstrato demais e encantador de menos. A linha que separa o absurdo e o enfadonho é, naturalmente, tênue, e o escritor precisa ter um fluxo criativo bem elaborado para permanecer dentro dos limites dessa linha (pelo menos na opinião pouco erudita e acadêmica do autor da presente resenha).
Isabel Allende entende bem esses limites. Mesmo que possua uma carga política que não é decisiva à qualidade geral da obra (muito pelo contrário), A Casa dos Espíritos é infestado de passagens fantásticas, comoventes histórias de amores impossíveis e uma sutil mensagem social, sem que se mencionem nomes, datas ou locais reais (mas a influência do Chile é clara, seja geográfica, política e até literariamente, como o leitor perceberá). Se debruçar sobre a história dos Trueba e dos del Valle é adentrar, inicialmente num manancial de emoções em meio a um universo vivo com enormes pássaros de madeira, presépios de barro, viagens de balão, formigas destruidoras, espíritos, terremotos apocalípticos e outras "maluquices"; posteriormente, o manancial se torna mais real e sombrio e sobram momentos de perturbação que doem, mas ensinam. A certeza que fica é que Allende foi certeira em relatar o real e o fantástico de uma forma sublime, formando a sua narrativa a partir de uma feliz mistura entre metáforas fantasiosas e concretas.