Ian 09/10/2023
Viagem ao centro da memória
Eu li Viagem ao centro da terra pela primeira vez quando era criança. Não consigo precisar a data, mas isso não importa. O que venho relatar é o contraste de ler um livro na infância e relê-lo na vida adulta.
Confesso que antes da minha releitura não tinha muitas memórias da minha primeira experiência com o livro. Porém, conforme fui lendo, aquele clima juvenil de fertilidade imaginativa e encanto foi regressando. Infelizmente não voltou tal qual na primeira vez, e talvez isso nem fosse possível; a memória se esforçou para me devolver a lembrança, mas a vivência é passado. Ainda assim, foi uma experiência intrigante. O que mais me sobressaiu foi a ambientação que criei (ou recriei) com base nas descrições de Verne. Principalmente o tom ocre que recobria a caverna principal a partir do fenômeno elétrico. Essa visão me relembrou do encanto que era ler livros como esse nessa fase da vida.
Entretanto, passada a nostalgia, vieram as conclusões do meu eu adulto acerca da leitura. Primeiro de tudo: a escrita de Verne é extremamente infantil (o que não é um problema dado o público do livro, porém acho que seria possível escrever o livro com uma linguagem mais adulta sem perder em compreensibilidade para as crianças). Não por conta do conteúdo, pelo contrário, o conteúdo é o destaque do livro, fruto de uma imaginação fértil e que semeia seus frutos nas imaginações alheias. É o formato dos personagens e seus diálogos que é desnecessariamente infantilizado. Todos os personagens são extremamente estereotipados e seus comportamentos e falas refletem isso. O protagonista é o jovem medroso, ansioso e preguiçoso que incessantemente e por vezes desnecessariamente tenta dissuadir seus companheiros da viagem. Ainda assim ele os acompanha fielmente sem uma justificativa clara do porque está superando seus medos. O professor é o cientista obstinado, obsessivo e sem tato social que é curto e grosso nos seus diálogos e não abre mão da expedição mesmo quando não tem motivos tangíveis para sustenta-lá. Sobre Hans, nem se fala. Aliás, ele mesmo nem fala. É aquele personagem que está presente pela força bruta e praticidade e pela saída que esses traços oferecem.
Para além desse problema narrativo, o livro é muito divertido nas suas proposições e explora os limites e possibilidades do pensamento científico da época de maneira intrigante e curiosa, utilizando essa ferramenta a seu favor durante toda a obra.
Por fim, o livro constrói uma expectativa muito grande e, quando entrega, ela é suprida, porém, ele entrega pouco. Sinto que havia um universo inteiro dentro daquela caverna mas nossos protagonistas só exploraram uma parte ínfima e ainda sim bem superficialmente. Verne deixou muito potencial não utilizado na obra.
Não obstante, é uma leitura agradável, divertida e rápida! Perfeita para alimentar a imaginação infantil.