rogerbeier 02/06/2012Realidade ou Ficção?Realidade ou ficção? Eis a questão que intriga todos aqueles que se aventuram a seguir o corpo embalsamado de Evita pelas labirínticas páginas de Santa Evita. Questão da qual o autor não descuida em passagem alguma de todo o romance e que pode ser aqui resumida através de uma provocação que o próprio Martínez nos faz em uma passagem de seu livro:
“Porque a história tem de ser um relato feito por pessoas sensatas e não um desvario de derrotados (…) Se a história é – como parece ser – mais um gênero literário, por que privá-la da imaginação, do desatino, da indelicadeza, do exagero e da derrota que constituem a matéria prima sem a qual não se concebe a literatura?”.
Lançado em 1995, Santa Evita logo se torna grande sucesso editorial, talvez o maior de seu autor, chegando a ser traduzido em várias línguas. No Brasil, foi editado pela Companhia das Letras, em 1996, ganhando cuidadosa tradução de Sérgio Molina.
Neste romance, Martínez narra simultaneamente quatro histórias que se imbricam sem uma ordem pré-estabelecida. Muitas vezes, uma serve de ponte para o início da outra, amarrando-a de modo que uma narrativa assimétrica e poliédrica forme um conjunto harmonioso no final.
A primeira das quatro histórias a aparecer no romance é o de Evita viva. Martínez prefere narrar a história da vida de Evita em sentido inverso, isto é, iniciando com o momento de sua morte, quando a mostra totalmente debilitada pelo câncer em seus últimos dias de vida, para chegar, nos derradeiros capítulos do livro, à história do seu nascimento, que foi narrada por sua mãe. No decorrer do romance, e sem seguir uma ordem definida, o autor vai revelando aos poucos a trajetória da saída de Evita, ainda jovem, de uma província do interior da Argentina, Junín, até chegar a Buenos Aires, onde passou a viver como atriz de rádios e teatros de segunda categoria, onde acabou por conhecer Juan Domingos Perón em um momento crucial da carreira política deste. Daí em diante, a vida de Evita muda de rumo, vai crescendo até se tornar uma das figuras mais importantes da Argentina e desembocar na sua trágica e prematura morte, aos 33 anos de idade, fato que colaborou enormemente para a formação do mito de Evita.
Assim, vemos que os dados biográficos de Evita são apresentados pelo autor aos poucos, no decorrer do romance e com grande riqueza de detalhes, o que demonstra, como nos diz Mario Vargas LLossa em sua resenha para o jornal La Nación:
“un trabajo de hormiga, una pesquisa llevada a cabo con tenacidad de sabueso y una destreza consumada para disponer el riquísimo material en una estructura novelesca que aproveche hasta sus últimos jugos las posibilidades de la anécdota”
A segunda história narrada em Santa Evita é a do destino errático do corpo de Eva Duarte de Perón. Tão logo esta foi dada como morta, Juan Perón, seu amantíssimo esposo, encaminha o corpo a um embalsamador espanhol cujo trabalho seria eternizá-la escondendo a morte presente em cada célula daquele corpo. Mais do que isso, ao narrar as aventuras pelas quais o corpo de Evita passou nos anos em que esteve desaparecido, o autor estava também se referindo à história da própria Argentina. No momento em que o corpo de Evita foi embalsamado, ele deixou de ser apenas um corpo para representar a Argentina. Segundo o Coronel Moori Koenig, um dos personagens do livro, ao embalsamá-la Pedro Ara acaba por confundir o corpo de Evita com a Argentina. Para o Coronel, o que está em jogo “não é mais o cadáver desta mulher, mas o destino da Argentina. Ou as duas coisas, que para tanta gente parecem uma só”. Em uma conversa com o embalsamador ele confirmaria que este “ao embalsamá-lo (…) tirou a história de lugar. (…) Quem tiver a mulher, terá o país em suas mãos”. E mais adiante, no último capítulo do livro, é o próprio autor quem confirmaria como o corpo embalsamado de Evita foi usado como alegoria para representar a Argentina: “Esse cadáver somos todos nós. É o país”.
A história de Evita morta, ao contrário da anterior, flui para frente, isto é, foi narrada do momento em que ela morreu em diante, seguindo o fluxo dos acontecimentos, a linha diacrônica. É do entrelaçamento destas duas histórias que surge, em sua maior parte, o romance de Martínez. É ele mesmo quem nos diz que contaria o romance tal como o sonhara um certo dia: “Não contaria Evita como malefício nem como mito. Iria contá-la tal como a sonhara: como uma mariposa que batia para a frente as asas de sua morte, enquanto as de sua vida voavam para trás[6]”. E junto à história de Evita, contaria também “o que foi sua pátria e aquilo que quis ser, mas não pôde”.
=============
Para não deixar o post ainda maior, veja a resenha completa no blog: http://umhistoriador.wordpress.com/2012/05/31/santa-evita-realidade-ou-ficcao/