Cassionei 30/04/2021
O LEITOR NO TRIÂNGULO
Uma das obras de Marcos Rey (1925-1999) talvez seja o primeiro livro que deixou marcas profundas neste leitor e o fez entrar de vez no mundo das Letras. Trata-se de “O mistério do 5 estrelas”, da célebre coleção Vaga-Lume, da Editora Ática. Hoje o livro é editado pela Global, a mesma casa que pôs recentemente em catálogo seu primeiro romance, ou novela, como o autor preferia chamar a obra, “Um gato no triângulo”, de 1953. Na verdade, é o primeiro publicado, mas havia escrito outro romance nos anos 40, que ficou inédito até sua morte, sendo lançado postumamente: “Os cavaleiros da graça divina”.
“Um gato no triângulo” prova que Marcos Rey não era só um bom contador de histórias, que seguiu uma fórmula de sucesso e a perpetuou em sucessivos recordes de venda, principalmente no âmbito da literatura infanto-juvenil, mas também na adulta, com “Memórias de um gigolô”, adaptado para uma série de TV. Agora a técnica de narração, em que os não-ditos instigam o leitor a completar as lacunas, somada à simbologia do triângulo, que logo se revela ser amoroso, prendem o leitor num enredo aparentemente banal.
Miguel é um jovem que mora com seu padrinho, depois de sua mãe, a empregada da casa, morrer. O padrinho é Rômulo (seria o pai que não assumiu a paternidade?), também dono de uma banca de peixes na feira, onde Miguel é ajudante. O velho o humilha, fazendo questão sempre de dizer que sustenta o afilhado. Por isso, Miguel tem um sentimento de ódio por ele, não de gratidão. No entanto, sente-se preso no lugar por não saber fazer outra coisa senão viver à sombra do outro. É daqueles seres sobre quem Oscar Wilde diria que na verdade não vivem, apenas existem.
Um dia o dono da casa resolve contratar alguém para fazer os afazeres domésticos, livrando Miguel dessas tarefas. A escolhida é Eugênia, por quem o jovem logo se apaixona. O patrão, no entanto, tem outros planos em relação a ela. A mulher, por sua vez, demonstra-se ambígua em relação aos seus sentimentos, se é que tem algum. Forma-se, então, o triângulo. O gato da casa, chamado Sultão, representa a narrativa que se esquiva do leitor, o engana, foge dele, mas o espreita, como se dissesse, me decifre, humano, ou te devoro. Ou o gato seria o leitor, acompanhando os fatos e analisando os vértices do triângulo? “Aposto que passa o tempo a estudar-me como se eu fosse um bicho misterioso, ponderou Miguel”. Há ainda um fiscal da feira, que vai aos poucos se mostrando tão misterioso como o gato e interfere na trama.
O desenrolar da narrativa reserva algumas surpresas e quebras de expectativas, mas também traz um viés trágico que o leitor já espera pelas características das personagens, afinal, o que faria um homem com o coração ferido, outro que sente velho e imprestável, mas que pode comprar tudo com o dinheiro, e uma mulher que está cansada de uma vida de pobreza? “(...) eu não quero que me aconteça o mesmo que aconteceu com minha mãe e minhas irmãs. Casaram com homens pobres e apenas sofreram”.
Wilson Martins, um ferrenho crítico literário, disse em uma entrevista que Marcos Rey foi um autor injustiçado, não reconhecido pela crítica. Apesar de o próprio autor desconfiar do romance, apontando hesitações, “Um gato no triângulo” é uma peça da mais alta elaboração artística, apesar do estilo direto do escritor.
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