Mr. Jonas 06/02/2018
Felicidade Clandestina
A menina do conto que dá título ao livro Felicidade Clandestina se regozija com o prazer que sente em usufruir da leitura, tratando-o como ?aquela coisa clandestina que era a felicidade?. Assim, a felicidade se associa ao estranhamento, como um sentimento com o qual não se está acostumado. Nos contos de Clarice, de uma forma geral, as personagens experimentam a felicidade, mas jamais fazem isso de maneira banal. Por isso, a felicidade existe, mas clandestinamente, fora das fronteiras da normalidade.
Alguns dos traços mais característicos do estilo da autora estão presentes nos contos de Felicidade Clandestina: a profusão de imagens estranhas, as reflexões metalinguísticas e o teor autobiográfico de muitas narrativas.
Assim como ocorre com a protagonista do conto, a felicidade vem de uma iluminação a respeito do mundo, um conhecimento que se adquire de forma inusitada. É o que se costuma chamar de epifania, uma revelação mística comumente associada à obra de Clarice Lispector.
No conto ?Miopia progressiva?, por exemplo, o narrador relata: ?Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele algo brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração?. Trata-se da perfeita tradução do processo epifânico, conforme ele costuma se manifestar nos contos da autora. Quase sempre, tais momentos acionam um processo de autoconhecimento, que transforma a vida das personagens em alguma medida.
Esses acontecimentos podem não ter nada de extraordinário. No estranhíssimo ?O ovo e a galinha?, o processo de reflexão é iniciado a partir de algo absolutamente banal na vida de uma mãe que começa a preparar uma refeição matinal: ?De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo?. A partir da constatação dessa banalidade é que começa a se revelar o ser humano.
O que as narrativas ensinam é que, para ter acesso a esse conhecimento, é preciso enxergar para além do ovo e do óbvio. No final de ?Miopia progressiva?, lê-se: ?cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego?.
E se é preciso ir além do explícito, é necessário também criar uma linguagem do implícito. Por isso, a reflexão metalinguística sobre os limites da expressão verbal é, por si só, quase um implícito das histórias de Clarice. O conto ?Os obedientes? começa assim: ?Trata-se de uma situação simples: um fato a contar e esquecer. Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé afunda dentro e fica-se comprometido. Desde esse instante em que também nós nos arriscamos, já não se trata mais de um fato a contar, começam a faltar as palavras que não o trairiam?. Isto é: existe o fato em si; mas o que nele deve ser resgatado, o que dele é de fato importante e permanente ? este é o mistério que a palavra usada para narrá-lo tenta superar. Ou, pelo menos, explicitar.