Orlando 04/03/2016
O LIVRO É: “A DAMA DO LAGO” DE RAYMOND CHANDLER
Raymond Chandler dispensa apresentações, sobretudo para o fã de literatura policial. Ao lado de expoentes como Dashiell Hammett, Ross Macdonald, Chester Himes, David Goodis e mais alguns outros nomes, Chandler elevou a literatura policial para um status maior, melhor e mais influente no panorama da cultura pop em geral.
Nascia com esses nomes a literatura Noir que, apesar de ter recebido essa denominação na França, é um estilo genuinamente americano. As ruas escuras, os policiais corruptos, as lindas mulheres misteriosas e sedutoras, os detetives durões que recebiam alguns dólares pela hora trabalhada, os casamentos falidos, um crime estranho envolvendo pessoas demais, idas e vindas atrás de informação, cafetões, jogatinas, bebidas e cigarros, muitos cigarros davam conta de muito da atmosfera Noir.
Mas Noir era mais do que tudo isso junto numa história, Noir era um conjunto de sensações, de estilos, de palavras, de um modo de agir dos personagens, acima de tudo, Noir era um reflexo de um momento no tempo e na cultura americina. Noir é um Zeitgeist que ecoa até hoje no imaginário da cultura pop-nerd mesmo depois de tantas décadas.
“A DAMA DO LAGO” DE RAYMOND CHANDLER
Ok, dava para fazer um especial Noir aqui com muito carinho… mas o objetivo do texto não é esse e você, leitor, que gosta do estilo pode encontrar muitos artigos detalhadíssimos sobre o mesmo com grande facilidade, vamos falar de uma mulher encontrada afogada em um lago… calma, isso está muito, muito longe de ser um Spoiler e estragar sua leitura, é só o começo.
Para falar sobre a dama encontrada morta, primeiro precisamos focar no personagem principal dos mais célebres livros de Chandler: Philip Marlowe, o detetive que protagonizou oito dos melhores livros escritos por Chandler e alguns dos melhores da literatura policial Noir.
Marlowe é o detetive durão, de poucas palavras, muita atitude e dedicação ao seu trabalho, muitos de seus expedientes ecoam um certo imperativo de contornar o politicamente correto e o sistema de leis que o cercam, até porque, em muitas situações a própria lei age contra o detetive na forma de policiais cuja conduta desabona seus departamentos e companheiros de farda.
Sem pudor algum de dizer o que pensa, Marlowe não poupa ninguém de seus julgamentos quando necessário e diz o que pensa sem a menor cerimônia, a despeito de toda seriedade e marra, também pertencem ao senhor Marlowe alguns dos momentos mais engraçados da literatura policial…
Chandler tinha uma veia cômica (pro lado do sarcasmo e ironia) que dava o tom de deboche a muitas situações de suas histórias…
A Dama do Lago é um livro dinâmico, intrigante e, a despeito de ter uma morte por afogamento, também é extremamente imersivo. Aproximadamente dois dias e meio são necessários para que Marlowe pegue o serviço, se mete numa confusão em uma cidade do interior, se depare com uma mulher cuja identidade é um mistério, encontre o amante da esposa de seu cliente, seja espancado e preso por policiais corruptos e consiga resolver o caso ao qual foi contratado.
O CASO…
Derace Kingsley é um homem de negócios com um nome e uma reputação a zelar. Tudo aparente, claro, seu casamento é uma conveniência, tanto ele quanto a esposa, Crystal, fazem o que bem entendem com quem bem entendem; no entanto as aparências nessa época ditavam as regras e escândalos eram perigosíssimos para homens na posição de Kingsley, então, quando sua esposa sai de cena com seu amante, Chris Lavery, e simplesmente não reaparece após um mês, Kingsley entra em ação para evitar que algo saia de controle e o tão temido escândalo venha à tona. Entra em cena para investigar o desaparecimento de Crystal, ninguém menos que o detetive Philip Marlowe, claro.
A par de um leque bem grande informações sobre Crystal, seu amante e sobre seu último paradeiro conhecido, Marlowe parte quase que imediatamente para o chalé dos Kingsley na região montanhosa de Little Fawn Lake, onde o amante de Crystal também reside pelas proximidades. De posse de uma carte de autorização-recomendação para o caseiro da propriedade, Bill Chess, Marlowe dá a largada para as 48 horas e uns trocadados mais agitados de sua carreira…
Como se tudo isso não fosse suficiente, um estranho elo une o caso do desaparecimento de Crystal com o soturno Dr. Almore, cuja esposa morreu em circunstâncias misteriosas e que tem no tira durão Al Degarmo uma espécie de guarda-costas para situações inoportunas, como no caso de detetives bisbilhotando onde não são chamados.
A NARRATIVA NOIR DE CHANDLER EM “A DAMA DO LAGO”
“A Dama do Lago” é uma obra muito interessante, difere dos outros livros de Chandler por sua dinamicidade. Em outras obras em que Marlowe figurava como protagonista, as investigações se prolongavam por semanas, até meses, as impressões psicológicas eram bem grandes e constantemente o detetive e seus coadjuvantes, tanto para o bem quanto para o mal, emitiam constantes reflexões e impressões sobre o mundo em que viviam… não que isso não ocorra em Dama, mas nesse caso o que predomina é a capacidade do autor em criar um complexo jogo de relações entre personagens espalhados entre duas cidades, todos enredados na teia que começa com o desaparecimento de Crystal.
Cada personagem adiciona um pedaço da trama em idas e vindas de Marlowe para montar o quebra-cabeças do desaparecimento que cruza com uma morte no lago, depois com mais dois assassinatos envolvendo um trama maior em que a traição de Crystal é o menor dos problemas.
Desse modo, Dama é um livro cujo foco principal não é desfilar os clichês do estilo Noir e sim desfilar uma narrativa multifacetada que é vista apenas pelo lado do detetive Marlowe, já que é ele o narrador da história. Acredito que, talvez, em algumas situações Chandler poderia ter dado mais espaço para outros personagens na trama, alguns aparecem, falam com o detetive, dão alguma “deixa” para o mesmo e depois nada mais acrescentam ao livro de modo geral… não é algo que desabone a narrativa, de modo algum, mas você sente que algo ali naquele personagem que apareceu tão rápido poderia ser mais aprofundando… talvez.
Chandler desfila ao longo do livro diálogos ferinos, ora bonitos e inspirados, ora de uma ironia e de um sarcasmo doentio típicos do Noir, já que estamos falando de uma época mais cínica na qual rispidez era mais que uma defesa, era um estilo de vida. Seus personagens são cheios de camadas de dubiedades e não se furtam ao jogo de interesses, a despeito de ser uma narrativa fictícia, o Noir de Chandler não tem nenhuma lição de moral, nenhum julgamento de valores, apenas mostra um mundo do jeito que era e seus personagens são apenas reflexos de sua própria época de criação. A obra de Chandler é humana até a medula (acho que li isso em algum lugar do livro).
Chandler não dá folga para seu detetive e nem para nós, leitores. o Fluxo de acontecimentos e ações age a favor da obra e mesmo quando está sendo descritivo, o autor consegue manter seu ritmo quase frenético e preenche página por página com o que há de melhor em sua escrita… caso não esteja acontecendo algo no sentido de movimento físico (idas, vindas, entradas furtivas, fugas ainda mais furtivas de casas invadidas), algum diálogo que guia a história está em curso.
Com a intenção de fazer de suas histórias algo bastante crível, Chandler prefere a lógica da montagem do quebra-cabeças e de um jogo honesto com seu leitor, deixando sempre na superfície a intenção de sua história e do crime investigado; nada de deduções mirabolantes, nem de criminosos absurdamente estranhos. Se Chandler te mostra algo numa cena, acredite, nada está lá para te distrair do rumo certo, para desviar sua atenção da investigação ou dos culpados, pelo contrário… não, aqui o pé é fincado num recorte de realidade perfeitamente plausível, o que, acredito eu, é mérito de sobra para o escritor.
Não são poucas as ocasiões em que é fácil se imaginar dizendo ou fazendo algumas das coisas que Marlowe ou outro personagem estão fazendo na narrativa. Que atire a primeira pedra aquele que nunca se revoltou com desmandos, autoritarismo, truculência e violência policial? Que se cale aquele que nunca sentiu vontade de de mandar aquele riquinho esnobe ir à merda…
Outro ponto positivíssimo da obra ficou a cargo da tradução de Braulio Tavares, encarregado da tradução, prefácio e organização das edições das obras de Chandler pela Alfaguara. Como se isso já não fosse mais que suficiente para se deleitar com a obra literária, ao final do livro temos doze dicas de Chandler para quem quiser se aventurar pelo mundo da narrativa policial de mistério e seus adendos… e, não satisfeitos em entregar uma edição bonita em acabamento, rica em conteúdo, soma-se a isso algumas cartas que o autor trocou com amigos do ramo literário, editores e afins… o Saldo do trabalho da Editora Objetiva, ao qual pertence a Alfaguara Brasil.
A DAMA DO LAGO
Autor: Raymond Chandler
Tradução: Braulio Tavares
Gênero: Ficção Policial Noir
ISBN: 9788579623295
Lançamento: 01/10/2014
Formato: 15 x 23
Páginas: 272
Preço: R$ 34,90
O AUTOR
Raymond Chandler nasceu em Chicago, em 23 de julho de 1888. Mudou-se para a Inglaterra com a família quando tinha 12 anos e, em 1912, retornou aos Estados Unidos. Após servir no Exército canadense durante a Primeira Guerra Mundial, estabeleceu-se na Califórnia e teve uma série de empregos, de contador a jornalista. Foi na época da Grande Depressão que ele passou a se dedicar seriamente à escrita, e seu primeiro conto, “Chantagistas não atiram”, que levou cinco meses para ser finalizado, foi publicado na revista Black Mask em 1933.
Seis anos depois, publicou seu primeiro romance, O sono eterno, que introduziu ao mundo o detetive Philip Marlowe, que apareceria posteriormente em outros seis romances: Adeus, minha querida (1940), A janela alta(1942), A dama do lago (1943), A irmãzinha (1949), O longo adeus (1953) e Playback (1958), adaptado de um roteiro original. Chandler foi também autor de contos, adaptações cinematográficas e ensaios. Morreu em 1959.
TÍTULOS DO AUTOR
> A dama do lago
> O longo adeus
> O sono eterno
> Adeus, minha querida
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