Toni 30/07/2021
Leitura 49 de 2021
O homem sem talento [1998]
Yoshiharu Tsuge (Japão, 1937-)
Veneta, 2019, 240 p.
Trad. Esther Sumi.
Na história da arte em quadrinhos japonesa, Yoshiharu Tsuge é considerado o pioneiro do gênero mangá watakushi, ou “quadrinhos do eu”. Seus trabalhos se encontram, portanto, no limite entre o biográfico e o ficcional, partindo sempre do pressuposto que tudo ali aconteceu, mas quase tudo é invenção, parafraseando a incrível síntese de Bernardo Kucinski. Isso não significa, obviamente, que Tsuge levou para o mangá fatos reais de sua vida, mas que os eventos e desdobramentos ali narrados são expressão das verdades do espírito, muito mais sinceras, na maioria das vezes, do que a superfície dos acontecimentos.
O homem sem talento fala sobre a miséria humana — tanto a física, premente e desesperadora, quanto a espiritual, que amiúde não percebemos. O protagonista é um pai de família que já trabalhou como autor de mangás, vendedor de câmeras fotográficas, antiguidades e que, após nada dar certo, dedica-se ao comércio de pedras. Passando seus dias às margens de um rio vendendo artigos que ninguém deseja comprar, a mente deste “homem sem talento” divaga pelas diferentes empresas que nunca conseguiram lhe trazer riqueza ou dignidade. Seu olhar é capaz de ver aquilo que ninguém mais enxerga, como a “pedra perfeita exprime a montanha e nos mostra o vale, sugere a nuvem e o vento… revela o universo”, mas o mundo parece não ter mais lugar para a aparente “inutilidade” de sua delicadeza de espírito.
Profundamente melancólico, o mangá reflete sobre o propósito da arte em nossas vidas, e os riscos de enxergarmos o mundo pela lente do utilitarismo, do sucesso imediato ou, ainda, para falar em termos atuais, dos likes e da arbitrariedade racista, neoliberal e consumista do algoritmo. Deixa um gosto bem ruim na boca, aquela sensação de aperto no peito, e nos assombra como a nuvem permanente do fracasso sobre a cabeça do homem que vende pedras. Mas é também um convite, terno e paciente, para retornarmos ao mundo no final de cada dia, carregados pela mão de uma criança que espera ansiosa para nos levar de volta à casa.
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