Silvana (@delivroemlivro) 02/10/2020
O último felino da espécie
"Coisas ruins, pedrinhas leves que precedem a avalanche. (...) as mil astúcias às quais o Leopardo devia ceder, ele, que por tantos anos havia afugentado as dificuldades com um gesto de pata."
Sai aristocracia, entra burguesia. E o animal, consciente do seu perecer iminente, agoniza. Mas essa despedida não tem ares de revolta: é melancólica, lírica e, sobretudo, lúcida!
"Pertenço a uma geração desgraçada, a meio caminho entre os velhos tempos e os novos, que se sente desconfortável nos dois."
1860-1910: 50 anos de uma Sicília em transformação: 275 páginas. A maior ilha do Mediterrâneo e que fica perto do "dedo" da "bota" da Itália é também personagem. Um personagem amaldiçoado: pelo clima, pela geografia, pela História e, especialmente, pelo caráter orgulhoso e irascível do povo siciliano. Essa é a visão desse Leopardo agonizante.
"(...) os sicilianos não vão querer melhorar nunca, pela simples razão de que se creem perfeitos; sua vaidade é maior que sua miséria. (...) nesse sentimento de superioridade que lampeja em cada olho siciliano, que nós mesmos chamamos de orgulho, e na realidade é cegueira. (...) Eles vieram para nos ensinar boas maneiras mas não vão conseguir, porque somos deuses."
A sociedade muda, o poder troca de mãos já a natureza humana... O que se perde e o que se ganha no processo, as transformações sociais revestidas de evolução, o que precisa morrer para que algo novo surja, as alianças que precisam ser firmadas para que algo do passado sobreviva no futuro. O Leopardo entre essas forças opostas. Esse ser imponente, culto, nobre, majestoso e agora... inútil! Há um novo rei na savana reivindicando o trono: é o dinheiro. E o o último felino da espécie, com sua visão aguçada, o recebe dessa maneira:
"Nós fomos os Leopardos, os Leões; os que vão nos substituir serão os chacais, as hienas; e todos eles, Leopardos, chacais, hienas, continuarão se acreditando o sal da terra."
E Tancredi, claramente um animal híbrido, profetiza: "Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude."
Um livro perfeitamente equilibrado, a leitura é acessível sem deixar de lado o apuro, a sofisticação da escrita. E destaco aqui algo difícil de se encontrar: o perfeito uso do subtendido, do não dito. O narrador também é interessante especialmente quando oferece acontecimentos que são saltos temporais à narrativa: "Acreditavam-se eternos: uma bomba fabricada em 1943 em Pittsburgh, Pensilvânia, devia provar-lhes o contrário."
Também é bom registrar que a trama será muito melhor apreciada por quem possui conhecimentos históricos sobre a Itália desse período. Confesso não ter sido meu caso mas, ainda assim, considero a jornada extremamente proveitosa.
Outro aspecto a ser considerado é que, apesar de não se tratar de um romance inacabado, é perceptível a falta de uma espécie de costura nos capítulos finais. Descobriu-se depois capítulos inacabados do autor que morreu em julho de 1957. O romance, após ser rejeitado por editoras, com o esforço de amigos e familiares de Lamepdusa, foi publicado em novembro de 1958. Se tornou o romance mais popular da Itália no pós-guerra e, em 1959 recebeu o Strega, prêmio literário italiano de maior prestígio.
Enfim, uma leitura melancólica mas sem excessos sentimentalistas, poético sem causar diabetes, pessimista mas sem provocar desespero: lúcido. Em suma, um perfeito equilíbrio em forma de livro: muito obrigada Giuseppe Tomasi di Lampedusa por esse único romance magistral!