Paulo 26/12/2023
É curioso eu estar lendo Warbreaker agora enquanto vivemos uma série de guerras que assolam o nosso mundo. Talvez nunca houve um momento melhor para acompanhar esta história. Sei que esta discussão não foi a que Sanderson pensou quando escreveu seu livro, mas os leitores se apropriam de suas leituras quando se deparam com elas. Temos duas nações em conflito, cada uma delas com uma visão diferente de mundo e sobre o que é a divindade. De um lado, temos uma nação que é mais austera e que enxerga na humildade extrema o caminho para a felicidade. Mas com isso se torna um local de pessoas mesquinhas e julgadoras que não conseguem ver o diferente como algo aceitável. De outro temos uma nação indolente, cujas cores são usadas para ostentar aquilo que eles desejam. Mas, que possuem uma relação mais próxima e direta com os seres de sua adoração. Resta saber se ambas as nações são capazes de coexistir em um mesmo lugar, complementando-se e aperfeiçoando-se ou se suas diferenças levarão a uma guerra inevitável.
Como a sinopse do livro não é lá muito boa, vamos procurar entender do que se trata a história. O rei de Idris negociou a paz entre seu país e Hallandren há séculos. Os idrianos foram expulsos de Hallandren há séculos por um usurpador e desde então vem lutando para recuperar suas antigas terras. Mas, os poderes dos Retornados são demais para eles, sem contar que Hallandren emprega um exército de seres meio que mortos-vivos chamados de os Sem Vida. Essa paz negociada envolvia o envio de uma das princesas de Idris para Hallandren para se tornar a esposa do Rei Deus Susebron, o atual líder da Corte dos Deuses. Tudo indicava que Vivenna, a filha mais velha, seria a enviada já que ela estava sendo preparada para essa posição desde que era pequena. Siri, a filha mais nova, sempre foi a mais relaxada e despreocupada dos filhos do rei, já que ela não tinha responsabilidades a cumprir. Só que o rei surpreende a todos quando decide enviar Siri no lugar de Vivenna para T'Telir, capital de Hallandren. Lá Siri se tornaria a esposa de Susebron e geraria um filho para tornar a elite de Hallandren em verdadeiros herdeiros da antiga família real e acabar de uma vez por todas com as exigências de Idris de retomar o trono. Ao chegar em T'Telir, Siri se depara com um lugar estranho, oposto ao local onde ela foi criada. Despreparada para a vida da corte, ela vai precisar entender o funcionamento de um lugar estranho onde alianças, traições e fofocas fazem parte do cotidiano. E qualquer deslize da parte dela pode levar à sua morte e a uma guerra com o seu povo.
O que contei acima é apenas a ponta do iceberg que é esse romance. Como a maioria dos romances de Sanderson, ele é repleto de nuances e reviravoltas que o transformam em muito mais do que parece à primeira vista. Só vou deixar um alerta aos leitores que Warbreaker é um livro que se passa inteiramente em um cenário. Todas as histórias se passam em T'telir e na Corte dos Deuses sem aparecer outras regiões desse mundo. Apenas o comecinho da história se passa em Idris, mas depois que Siri e Vivenna se mudam para T'telir, a história inteira se volta para lá. E isso acontece antes de 15% da leitura. Se podemos fazer alguma afirmação é a de que se trata de um livro cuja essência é uma grande história de conspiração e de corte. Quem espera cenas de ação só vai vê-las lá pelo final do livro mesmo. Toda a graça da história está em como Vivenna e Siri tem suas expectativas alteradas pelo cenário que elas encontram e em como elas vão superar seus próprios preconceitos. Como a gente passa o tempo todo nesse lugar, preso junto aos personagens, acabamos nos acostumando e curtindo as intrigas de corte. E acho que essa frase resume muito bem a vida desses personagens: tanto Vivenna, como Siri, Susebron e até Lightsong não podem sair desse lugar. Ele é uma grande prisão, decorada por belíssimas cores e luxo, mas não passa de uma grande prisão.
A escrita de Sanderson é bastante contida neste livro e vai explorar mais as nuances da vida em uma corte e os personagens e como se relacionam. Nesse ponto, consigo comparar a escrita de Warbreaker mais para o que o autor fez em Mistborn do que para O Caminho dos Reis. Essa é a sensação que fica a partir de como ele aborda a história. Está totalmente na cara que o autor emprega a jornada do herói para as duas princesas com a relutância, a busca por um mestre, a necessidade de obter conhecimentos para então haver algum tipo de alteração no status quo. Warbreaker é bem fantasia tradicional mesmo, sem grandes alterações narrativas. Me incomodou um pouco porque sei que o autor consegue entregar algo melhor, mas como uma leitura de entretenimento, funciona. O desenvolvimento dos personagens é bem legal e acompanhamos como eles tem suas pré-concepções de mundo desafiadas pelas conclusões que eles chegam ao se deparar com os desafios apresentados pela história. Só achei que o livro poderia ser menor. Tem um momento mais ou menos na metade da história que parece que as coisas não estão andando e Sanderson insere poucas novas informações. E mesmo as que ele insere são repetidas mais tarde. É um livro de mais de seiscentas páginas que poderia ter quatrocentas e não faria a menor diferença.
Falando sobre o que o povo gosta nas narrativas de Sanderson que é o sistema de magia, não achei tão inovador assim. É diferente, é criativo, mas se pararmos para pensar não é algo que já não tenhamos visto em outro lugar. O sistema de magia se baseia em algo chamado sopro, que é como se fosse a alma das pessoas. Os indivíduos desse planeta podem empregar o sopro para realizar funções como animar objetos ou seres já mortos. Para isso, eles precisam acumular sopros, ou seja, existe toda uma economia baseada na circulação das almas entre os indivíduos. Aquele que fica sem o sopro, se torna um drab (não consegui encontrar uma boa tradução para isso) e não é que a pessoa morre, mas o mundo fica mais cinzento e sem graça para ela. Os Retornados, teoricamente, são seres que realizaram ações gloriosas no passado e retornam como indivíduos que possuem sopro de forma espontânea e em maior quantidade. Para poderem sobreviver, eles precisam absorver um sopro por semana, então os adoradores dos Retornados se sacrificam em nome de seus deuses. Um Retornado pode empregar seu sopro apenas uma vez, para um indivíduo, e depois eles morrem. O Rei Deus é um ser que possui uma quantidade enorme de sopros e alcançou um estágio de poder divino. Isso porque quem acumula sopros alcança níveis de Percepção diferentes: uma pessoa pode desde enxergar as cores com maior nuance, detectar energias vitais e até se tornar imortal. Tem mais alguns detalhes sobre a magia BioCromática que vou deixar para que vocês descubram ao longo da narrativa. Mas, a grande verdade é algo que Vasher fala lá pela metade final da história: muito do emprego do BioCroma é um mistério e os Despertadores (nome dado a quem usa magia biocromática para despertar objetos) realiza tudo no instinto.
Como mencionei antes, boa parte da narrativa se baseia nas diferenças entre Idris e Hallandren e isso pode ser visto na maneira como Vivenna encara a cidade logo que ela chega. Os idrianos tem uma maneira quase monástica de encarar a vida. Nada de ostentar cores, nada de mostrar o corpo, sempre uma atitude calma e ponderada sobre tudo. Só que T'telir representa o oposto disso. Tudo é colorido, as pessoas usam cores bufantes, roupas que mostram mais do que o necessário. A vida dos Retornados é uma existência hedonista, regada a vinhos, mulheres e excessos. Gostei de como Sanderson aborda o tema de maneira bastante respeitosa, sem demonstrar juízo de valor. Não são os excessos que tornam algo bom ou ruim, mas um meio-termo entre tudo. Pensar que Sanderson é mórmon e que isso poderia interferir em sua escrita e não interferiu, mostra o quanto ele possui uma cabeça mais progressista. Não vou dizer aqui que Sanderson é um China Miéville da vida, defendendo revolução, tomada de poder pelos camponeses ou algum nível de anarquismo, mas o debate sobre excessos é bem interessante. Vivenna é bastante preconceituosa no começo da aventura e chega a cutucar o leitor de um jeito não tão agradável. Só que suas experiências ao lado dos idrianos urbanos e de todo o contexto de exploração e vida em uma grande cidade a fazem lentamente questionar os seus valores. Talvez ela é a que tenha o melhor arco de personagem justamente por Sanderson a colocar em situações bem desagradáveis a ponto de ela pensar em se prostituir para sobreviver. Pensem em uma princesa mimada, criada para ser a esposa de um deus, cujos valores monásticos são quase ferrenhos e precisando lidar com a realidade da vida.
Já Siri se vê em uma situação a qual ela não estava preparada. Ela nunca pensou em estudar, em prestar atenção em seus tutores, em entender normas de etiqueta. A jovem foi pega no contrapé e agora se vê diante de um deus, precisando se tornar aquela que irá carregar o herdeiro de um reino. Sanderson consegue traduzir muito bem o sentimento de se sentir usada, como um objeto a ser ostentado e depois jogado fora. Siri é levada à corte meramente para transar com um deus e parir um filho. O quanto isso é humilhante para ela, que chora e se desespera por se sentir impotente diante de um cenário horrível de existência. Sanderson poderia ter trabalhado mais essa questão, mas a mim não me incomodou a forma como ele fez. É aquilo: poderia ter tido mais? Sim. Mas, okay. Melhor do que muitos autores que deixam passar a questão feminina ao largo. Talvez eu esteja errado e as meninas leitoras possam me corrigir e achar que ele não deu a devida atenção... e eu vou entender totalmente até porque não consigo me pôr no lugar. O que me agradou foi a jornada de empoderamento da Siri, que aos poucos aprende a lidar com toda aquela confusão que é a corte de Hallandren. Mesmo inocente, ela vai se adaptando pouco a pouco e entendendo todo o mecanismo de alianças e fofocas que existem naquele meio e se policiando para se tornar alguém que saiba minimamente jogar o jogo. E essa é uma transição bem lenta até que tomamos um choque ao vermos o quanto Siri amadureceu e aprendeu a manipular o que os sacerdotes imaginam que ela esteja fazendo no quarto do Rei Deus.
Vou mencionar mais Lightsong porque Vasher, apesar de ser outro dos pontos de vista, não é alguém que recebe tanto espaço. Lightsong, o Bravo, é um dos deuses que habitam a Corte dos Deuses. Desde o começo percebemos o quanto ele é diferente dos outros. Ele é um deus que não acredita em sua divindade. Um Retornado que faz todo o possível para parecer inútil para a população. Isso porque ele não sabe qual é o seu lugar no mundo. Porém, sua curiosidade o levará a questionar o status quo. E é esse questionamento que irá tirá-lo de sua inércia e colocá-lo em movimento em um momento onde outros deuses se organizam para alimentar as chamas da guerra contra Idris. Ele percebe que sua posição o coloca no meio do furacão e ele precisa tomar alguma decisão, mesmo que ele não queira. Porém, ao se questionar sobre quem ele era no passado (um Retornado perde a memória de sua vida passada), ele começa a desconfiar que alguma coisa não está certa em toda essa corte que valoriza o nada absoluto e o viver de forma relaxada. Lightsong é arrastado a contragosto em direção a uma teia de meias-verdades e segredos que o colocarão lado a lado com Siri.
Para vocês que procuram conexões com o mundo maior da Cosmere, Hoid está presente aqui. A mesma figura que aparece em Elantris, em Mistborn e depois em O Caminho dos Reis, está presente como um mero contador de histórias no palácio de Lightsong. Ele aparece justamente quando Siri precisa conhecer mais sobre a história dos antigos Reis Deuses de Hallandren e qual a sua conexão com Idris. Aliás, não vou contar mais do que isso, mas Warbreaker é uma ponte importantíssima entre os volumes 1 e 2 de O Relato das Guerras das Tempestades. Você precisa passar por essa história para entender um grande detalhe presente lá no final do livro. É possível ler Stormlight sem passar por Warbreaker? Sim. Mas, Stormlight ganha cores maiores (sem trocadilhos com o biocroma) a partir dessa história.
Warbreaker é um bom livro, não é o melhor do autor. Diverte, e para quem curte aquela pegada meio Game of Thrones, mas mais leve, vai encontrar no livro uma boa história que vai diverti-lo por um bom tempo. O livro é grandinho, mas de leitura bem fácil. As páginas passam voando graças ao bom senso de escrita do autor. O sistema de magias, como sempre, é um atrativo dos livros de Sanderson e ele emprega explicações quase científicas para explicar manipulação de almas. Os personagens são bem trabalhados, embora tenha algumas reservas aqui e ali. Por sorte, Sanderson não empregou aquelas estranhas coincidências que tanto me incomodaram em Mistborn. Enfim, um bom livro que serve como ponte entre uma possível fase 1 e 2 da Cosmere do autor.
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