Alle_Marques 04/03/2024
Menino perdido, menino de engenho.
...
É um livro bem pesado, embora nem sempre pareça, isso graças a forma "leve" que o narrador escolheu para contar sua história e ao tom saudoso e nostálgico que o acompanha nessa jornada.
A escrita é cheia de gírias regionais que dificultando um pouco a leitura para quem não está acostumado e a história não tem um único grande acontecimento, nem mesmo uma trama complexa que nos deixe ansiosos e querendo saber o que acontece depois, logo, é bem difícil se apegar, se interessar por esse livro, a história e seus personagens, consigo entender facilmente que não gostou e abandonou a leitura, porém, é impossível ter contato com essa obra e não se chocar com ela e é justamente trabalhando em cima dessa intenção que a obra se sustenta.
Afinal, estamos diante de um homem adulto relembrando com carinho e nostalgia sua infância, não seria nada demais, senão fosse por essa infância ter acontecido em um ambiente regado pelas mais diversas violências e abusos, uma infância marcada pela negligencia, pela injustiça, por absurdos, pelo racismo, por violência doméstica, sexual, contra mulheres, animais e crianças, uma infância em um ambiente propicio e que fecha os olhos para o feminicídio, a pedofilia e até a zoofilia, e tudo isso, não só pelos olhos inocentes de crianças, como também sendo sempre normalizado pelos adultos ao redor delas.
Sim, é realmente bem difícil olha pra isso e não entender, até não aceitar, a foram "leve" e "banal" que o narrador, e consequentemente o autor, escolheram usar para retratar tantos absurdos, tantas coisas erradas, também é fácil se deixar levar e imaginar que o livro apenas envelheceu mal ou que o Carlinhos, agora adulto, é simplesmente "ruim" ou que não liga, não vê problema, em tais coisas, assim como os adultos da época também não viam, mas isso, além de ser um pensamento equivocado, também ignora a real intenção do autor: a crítica direcionada a sociedade da época. Tanto do autor com o livro, como do protagonista escolhendo se manter fiel aos fatos e não nos poupando de nada. Isso nada mais é do que a forma brilhante que o José Lins do Rego encontrou para, justamente, destacar tais comportamentos e nos chocar com eles, se por um lado ele (narrador ou autor, a essa altura não faz muita diferença) escolheu relembrar sua infância com carinho, por outro, ele também escolhe destacar cada absurdo de forma crua e verídica, de forma que fique impossível não nos perguntarmos "Como as pessoas não viam problema, nem faziam nada, sobre isso?" ou, até mesmo, impossível não compararmos com as pessoas que conhecemos que adoram relembrar as próprias infâncias com nostalgia, mas ignoram, de forma consciente ou não, as muitas violências que elas próprias foram vítimas. É justamente esse contraste – infância feliz e nostálgica de um lado, infância violenta e abandonada de outro – que engrandece a obra e a torna uma crítica tão sagaz.
Além disso, também é bem chocante e incomodo a forma como o livro ainda consegue se manter tão atual, e isso graças a outro ponto de destaque nele: a forma tensa e apavorante como ele retrata a "formação" de homens, daquela classe social, naquela época. Eram meninos sendo criados desde muito novos em ambientes completamente hostis à infância saudável, cheios de machismo, sexualização precoce e a ideia assustadora de que eles, apenas por serem meninos, com dinheiro e brancos, eram naturalmente superiores a todo o resto. Por isso, o livro, além de ainda bem atual e realista, também já pode ser chamado de atemporal, pois pessoa com pensamentos primitivos como esse, infelizmente, não ficaram no século XX.
...
[...] Sentia um prazer sem limites quando me caía um canário no alçapão. Não ia para o almoço, entretido com a gaiola da chama. Procuravam-me por toda parte. Minha tia Maria ameaçava de soltar tudo quanto era passarinho.
— Nem come mais, só pensando em canários...
Absorvia-me inteiramente com o esporte cruel. Deixava os moleques e os primos para um canto. Mas os meus canários não cantavam. Via-os soltos, com trinados de estalos, dando os seus concertos nos galhos das árvores. Nas gaiolas, irremediavelmente mudos. Faziam greve contra mim. Tratava deles com cuidados maternos. Limpava-lhes as gaiolas, pisava-lhes milho — e nada, calados de vez. Dependurava-os então pelos pés de pau, para ver se os enganava com esse contato com os palcos dos seus dias de festa. E mudos sempre. Os meus pássaros só trabalhavam ao bom preço da liberdade. [...]
...
5° Livro de 2024, 6ª Resenha de 2024
Desafio Skoob 2024
Leitura coletiva com o canal "Ler Antes de Morrer" (Isabella Lubrano)