R...... 31/10/2018
Imaginava obra de memórias pueris, essencialmente valorizadas em aventuras, descobertas, traquinagens e humor típico da adolescência, com doses de ingenuidade ou picardia em texto leve para entretenimento. Pura alienação, no erro de partir para a leitura sem a coerência mínima de informação delineadora, por estar preguiçosamente confiante em suposições clichês.
Apesar do contexto, no recorte temporal da passagem de um menino por colégio interno com suas peculiaridades, não me pareceu romance juvenil. É uma obra densa, extremamente dissertativa nas abordagens, onde há melancolia, clima lúgubre, ambiente impactante, luta por adaptação, centralização no presente com desapegos ao passado e futuro, com conceitos de autopreservação de forma materialista, baseados apenas na imposição de cada indivíduo, que se encontra cercado de desafios onde se vê sozinho e um tanto cético a qualquer agir diferenciado disso.
Li com essa sensação, reforçada pelo narrador, o adulto que se tornou o menino do livro, como se fosse realidade que se projeta além dos limites do internato, numa visão fatalista da vida. Registre-se que o livro reflete muito do que viveu o autor.
Sim, me parece algo amargo, dramaticamente sugestivo a uma percepção de viver desafiador, apegado a visão que seria a realidade da vida.
Em seu materialismo, exalta o darwinismo (sobrevivência em adaptação) e descrédito à beleza emanada pela arte (que subtendo na disponibilidade de posicionamento apreciativo, ou positivo, na vida - seria a delicadeza uma expressão de fraqueza?) de diferentes maneiras como algo ilusório e alienado. Essas conclusões não são óbvias, mas implícitas no texto.
A obra tem linguagem rebuscada, metida a cientificismo nas conclusões e confesso que teve partes que foram chatas e outras nem entendi. O texto tem essa caracterização, vendo a influência do meio ao indivíduo, com as conceituações referidas. Prima pela eficiência, sem mínimo de humor, como se não houvesse espaço para subjetivismo, mesmo que fosse irônico, exaltando exatidão dos fatos, apresentando-se formal. É a ciência em precisão que valoriza em sua crença.
Na boa, devaneando na leitura, fiquei com imagem de um autor infeliz, preso em conceitos próprios, legalizados em sua percepção a partir da experimentação. Como foi sua vida?
E devaneando mais, no que guardei do livro, ainda que não seja a ideia central, fico com o aspecto como determinante de tudo (alheio a toda a conversação de cientificismo, coisa e tal) do impacto da ausência dos pais para o menino. A perda desse referencial (e estou falando de pais na projeção do significado de fato), foi a origem da visão e conclusões apresentadas no livro. Está lá na parte um, com a chegada no colégio interno (verdadeiro abandono), e na última, onde deixo em registro esta passagem:
"Desde essa ocasião, fez-se-me desesperada necessidade a companhia da boa senhora. Não!, eu não amara nunca assim a minha mãe. Ela andava agora em viagem por países remotos, como se não vivesse mais para mim. Eu não sentia a falta. Não pensava nela... Escureceu-me as recordações aquele olhar negro, belo, poderoso, como se perdem as linhas as formas, os perfis, as tintas, de noite, no aniquilamento uniforme da sombra... Bem pouco, um resto desfeito de saudade para aquela inércia intensa, avassalando."
O contexto é num momento de sofrimento enfermo, onde até poderiam dizer que se refere a ele e não aos pais, mas leia o contexto e sinta, perceba, avalie...
Vou registrar mais uma passagem do derradeiro capítulo:
"...Salvar o momento presente. A regra moral é a mesma da atividade. Nada para amanhã, do que pode ser hoje salvar o presente. Nada mais preocupe. O futuro é corruptor, o passado é dissolvente, só a atualidade é forte. Saudade, uma covardia. O dia de amanhã transige; o passado entristece e a tristeza afrouxa.
Saudade, apreensão, esperança, vãos fantasmas, projeções inanes de miragem; vive apenas o instante atual e transitório. É salvá-lo!, salvar o náufrago do tempo.
Quanto à linha de conduta: para diante. E a honesta lógica das ações."
O contexto da passagem é uma carta do pai ao menino.
Enfim, o livro me faz perceber o desastre e impacto transformador na ausência dos pais na vida dos filhos. Pompeia olhou tanto para o meio e esqueceu, ou deixou, ou talvez não tenha tido a percepção, do fator desencadeante de tudo.
Ocorreram coisas sinistras no internato, até risco de morte ou sérios danos, com seduções precoces para um menino que, na prática, e sozinho, vai se transformando pela ausência da base familiar.
Também tenho essa percepção arraigada nos seis anos que trabalhei em abrigo numa entidade governamental destinada a crianças e adolescentes em situação de risco social. Vi muitas histórias, muitos Sérgios como o do livro, transformações e, por mais que houvesse estrutura de psicólogos, babás, educadores e outros funcionários, nada verdadeiramente substituía a importância dos pais (na acepção da palavra, pois muitas vezes estão presentes e ausentes ao mesmo tempo).
Testemunhei percepções de adolescentes exatamente como as do fatalismo do autor...
Uma das coisas que sempre me impactava era quando passava em vistoria de noite e madrugada adentro pelos quartos (era desse turno), onde deparava com aquelas crianças (e muitas vezes eram tantas que a gente tinha que improvisar colchões no chão) me parecendo tão suscetíveis e expostas a influências desse mundo, onde se via o impacto da ausência dos pais que, verdadeiramente, no sentido existencial, não poderiam ser substituídos por qualquer outro mecanismo. O amor dos pais é como um escudo. Testemunhei muita coisa dramática e transformadora nessa ausência.
O livro reacendeu esses pensamentos.