Ivana M. 19/09/2024
Transgressor
"O Cortiço" é uma das obras-primas do Naturalismo brasileiro, escrita por Aluísio Azevedo, que, com olhar clínico e impiedoso, expõe as entranhas da sociedade carioca do final do século XIX. O autor utiliza o cortiço como um microcosmo, onde as classes sociais mais baixas se misturam e revelam a degradação humana. A abordagem naturalista de Azevedo faz com que os personagens sejam retratados de forma zoomórfica, aproximando-os de instintos primitivos, quase animalescos, e ressaltando o determinismo que rege suas vidas.
Um dos pontos centrais da obra é a zoomorfização dos personagens. Azevedo transforma os moradores do cortiço em figuras bestializadas, guiadas por impulsos básicos como fome, sede, desejo e sobrevivência. A figura de João Romão, o português dono do cortiço, é emblemática nessa ótica: ele é retratado como um ser ganancioso, que age como um predador, explorando sem escrúpulos os pobres que vivem sob seu domínio. Bertoleza, sua companheira negra e escrava, por outro lado, é tratada como uma besta de carga, presa em um ciclo de trabalho extenuante e submissão. Esses personagens, e tantos outros, são reduzidos a suas funções biológicas, aproximando-se de uma condição animal, o que reforça a ideia de que as circunstâncias determinam suas ações e comportamentos.
A crítica social implícita é outro aspecto essencial de "O Cortiço". Azevedo, ao descrever o ambiente miserável em que vivem seus personagens, constrói uma denúncia velada das condições de vida das classes mais pobres. O cortiço, como entidade viva e pulsante, parece devorar aqueles que ali vivem. As paixões e os vícios dominam o espaço, e as interações entre os personagens são marcadas por inveja, cobiça e desejo sexual. Azevedo revela, assim, o contraste entre a aparência de progresso do Rio de Janeiro e a realidade brutal dos marginalizados.
O autor também lança um olhar crítico sobre a ascensão social. João Romão, apesar de ter ascendido economicamente, não consegue se desvencilhar da sua natureza avarenta e animalizada, mesmo quando busca se inserir na classe burguesa. Sua transformação final, ao casar-se com Zulmira e adquirir status, não é uma redenção, mas uma continuação de sua luta selvagem por poder e controle.
"O Cortiço" é, portanto, uma obra que expõe de maneira crua e realista as feridas sociais do Brasil de seu tempo, utilizando a zoomorfização dos personagens como um recurso literário para ressaltar a degradação humana imposta pelas condições de vida precárias. Ao transformar seus personagens em seres que agem por instinto, Azevedo denuncia um ciclo de opressão social que, apesar de suas nuances, ainda reverbera na sociedade moderna.