Rick Shandler 23/07/2024
O cortiço - Aluísio Azevedo
A leitura de O cortiço é um marco de todo leitor brasileiro. Em algum momento somos apresentados a esta obra que dentro de todas suas facetas é única. O cortiço é uma aula de história, sociologia e, acima de tudo, de brasilidade, por isso não é de se estranhar este livro ser um dos mais frequentes em vestibulares Brasil afora. Entretanto, diferente de outros livros que são apresentados em sala de aula, o clássico de Aluísio Azevedo não enfrenta uma maior resistência dos jovens leitores tamanho o frescor do seu texto, o qual se assemelha muito as atuais novelas que assistimos na televisão. É um livro com tom de fofoca. Quem não gosta de uma fofoca?
João Romão, Bertoleza, Miranda, Estela, Firmo, Rita Baiana, Jerônimo, Pombinha. Todos personagens, nenhum protagonista. O próprio cortiço é o protagonista. Vemos ele nascer, crescer, queimar até as cinzas e renascer. Cada personagem, de sua forma, ajuda a compor o cortiço. Uma proliferação incontrolável de histórias, de vida. O cortiço é um ser vivo, Aluísio Azevedo o disseca. Assim como diferentes células, diferentes tecidos e diferente órgãos convivem e formam um organismo, diferentes personagens convivem e formam o cortiço. Há um senso de comunidade, um coleguismo, uma parceria, mas há também o conflito. Há algo de animal, selvagem e cru no cortiço. Ele é úmido, barulhento, agitado, vivo. O cortiço é moldado por seus moradores, mas também os molda. Uma via de duas mãos, uma perfeita simbiose. Um verdadeiro experimento naturalista.
Para além da abordagem naturalista de Aluísio de Azevedo, o cortiço também pincela diversos aspectos importantes para a constituição da sociedade da época, e por consequência da nossa sociedade atual. João Romão e seu vizinho Miranda, os rivais portugueses, ilustram os caminhos do poder. Os caminhos da ascensão social para a “elite”. Ganância, ambição, exploração, casamentos, títulos. Não surpreende nada ver ambos irem de arquirrivais para parentes. Aliás, essa guinada de João Romão para a família de Miranda traz consigo outro dos mais interessantes arcos do livro: a história de Bertoleza. O cortiço se passa num Rio de Janeiro ainda escravocrata. Bertoleza jamais deixou de ser escrava sob os olhos de João Romão. Jamais deixou de ser menos. Não só seu final trágico, mas toda sua trajetória no livro diz muito sobre como nós, como nação, lidamos com a abolição da escravidão. Por fim, temos a própria evolução do cortiço, remontando aquilo que foi a origem das nossas favelas. Vemos como se organizaram essas moradias. Vemos como as relações se estabeleceram, seja a relação entre os moradores, seja a relação dos moradores com João Romão, seja a relação do cortiço com a cidade, seja até mesmo a relação do cortiço com a própria polícia. É uma aula de história.
O cortiço é uma expressão de brasilidade. Uma experiência de leitura única e muito proveitosa. O puro suco de Brasil. Tem que ler.