Karine Coelho 18/06/2010
Olhe para as sombras...
As palavras me tocaram como ferro em brasa. Entraram em meus ouvidos como um enxame de abelhas, zumbindo na minha cabeça e não me deixando pensar. Elas me possuíram como um espírito. E de repente, eu era Sandro, e Sandro era eu. Desci a velha ladeira que todos os dias desço, naquela cidade esquecida por Deus, e meus pensamentos eram os do Sandro. Andei de cabeça baixa, olhando para o chão, como é meu costume e o do Sandro. Olhei para as pessoas ao redor e elas eram invisíveis: não tinham rosto, nem voz. Eram como eu, como o Sandro, naquela cidade que também não tinha rosto, nem cartão-postal. Todos nós somos invisíveis. Se eu tivesse um espelho veria que não tinha rosto. Se gritasse, perceberia que não tenho voz. As palavras me deixaram sem fôlego, e sem pensamento. Eu não sabia o que pensar. Tudo fazia tanto sentido, mas era tão doloroso. Não quero mais ouvir. Fechei o livro. A verdade incomoda, ela é dura, mas é real. Eu os vejo todos os dias, as pessoas sem rosto, elas me olham de volta. Mas eu também não tenho rosto.
Assim como o Sandro também sou uma sobrevivente, não de uma chacina que ganhou visibilidade mundial, mas da grande tragédia diária que é a nossa vida. Eu quero ser vista também, quero ser ouvida! Quero entrar para a eternidade. Quero ser lembrada. Mas, será que as pessoas irão se lembrar de mim daqui a dez anos, assim como não se lembraram do Sandro? Nem eu mesma me lembrava do Sandro, confesso. Pra mim, havia sido a uma eternidade. Os brasileiros não têm memória. Muito prazer, eu sou Sandro Barbosa, sou João Hélio, sou Isabela Nardoni, sou Gabriela, sou Eloá. Sou Legião: milhares de pessoas que morreram no Rio, em Niterói, em Angra, no Haiti e no Chile (você se lembra do Chile?) Sou aqueles que morreram na chacina da Candelária, os presos que morreram no Carandiru, as vítimas da chacina da Baixada Fluminense. Você se lembra disso? Queremos justiça, gritam os cartazes. Mas, daqui a alguns meses todos terão esquecido. Não, eu não sou Tim Lopes, não sou Daniela Perez. Eles têm rosto, eu não. Eu sou aquele cara estendido no asfalto quente, morto a tiros por sei lá quem. Nem os jornais vêm tirar uma foto do meu corpo sem rosto e sem vida. Assim como o Sandro, eu sou apenas mais um bandido, graças a Deus que morri, menos um bandido no mundo! Bandido bom é bandido morto. Ninguém se interessa pela minha história. Se eu morrer eu também serei mais uma, né, enterrada naquele cemitério horrível escondido naquela cidade sem rosto.
Subi no ônibus. E de repente eu não era mais o Sandro. Eu era eu. Ele escolheu o modo errado de ser visto, eu nunca cometeria esse erro. Eu não quero ser um rosto momentâneo na mídia. Eu quero ser lembrada por quem sou, e pelo que eu fiz. Ou vou fazer. Eu vou olhar para as pessoas sem rosto, vou olhar para as sombras, vou fazer a minha parte. Não vou esquecer. Prometo que não vou esquecer.