mpettrus 04/10/2024
O Teste Literário de Humanidade de Boulle
?Ele é teimoso feito uma mula e estúpido como um homem?
? Como é entrar num mundo em que o homem e o macaco trocaram de lugar?
Charles Darwin argumentou certa vez que os nossos antepassados ??distantes eram macacos, e Pierre Boulle, como num espelho distorcido, mostrou os macacos como os nossos descendentes evoluídos.
? O romance, um autêntico conto voltairiano, oferece uma reflexão irônica, por vezes mordaz e sutil, sobre a pretensão do ser humano, ao mesmo tempo que oferece ao leitor uma história original de antecipação.
? Esta ficção científica é tão convincente que o menor pensamento que admita a possibilidade de tal coisa dá um arrepio na espinha. O enredo da história se passa aproximadamente 2500 anos depois, nos dias atuais, onde uma nave espacial de pesquisa cai no misterioso planeta Soror do sistema estelar Betelgeuse.
A história então começa com Ulysses Mérou contando sua jornada em Soror, onde ele e sua tripulação encontram uma sociedade governada por macacos, incluindo chimpanzés, orangotangos e gorilas.
Lá, a civilização dos macacos inteligentes substituiu a civilização humana. Bem, quando Ulysses retorna ao seu planeta natal, uma surpresa desagradável o aguardava.
? Um livro que não é fácil de entender e ainda mais difícil de apreciar. Sempre fico surpreso ao ver como nossa compreensão da ficção mudou nos últimos anos. Muitas vezes me lembro dos clássicos do gênero, admirando sua imaginação ou visão, nunca esquecendo que o tema principal de suas pesquisas era a sociedade moderna, seus problemas e rumos de desenvolvimento.
? Preciso lhes dizer que o livro não ficou desatualizado nos últimos 60 anos. Os problemas que Boulle levantou nesse romance tornaram-se ainda mais agudos nos últimos anos, principalmente quando falamos de um conceito tão em voga como a tolerância entre os homens de hoje.
Impressionou-me bastante a capacidade de antecipação de Boulle, ao contextualizar nossa visão da evolução humana. Uma humanidade que se definha pela incapacidade de permanecer viva e dinâmica, que perde a noção do bom senso porque estagnou-se, porque está dispersa em futilidades. O que me lembra ?Blade Runner? de Philipp K. Dick, a analogia com os androides é a mesma. Mas menos sintética.
?O cenário da Bolsa de Valores é, na minha opinião, o mais flagrantemente verdadeiro, pois podemos perceber as semelhanças com o nosso dia a dia. Uma agitação furiosa e autossustentável, vivendo em perfeita autossuficiência, para uma especulação totalmente virtual. Esta agitação é puramente desnecessária e defasada das nossas necessidades primárias. E é aí que se atinge o alvo.
?O autor descreveu um espelho infinito da evolução através da imitação, tendo como seu maior representante, o Macaco. Graças à evolução com o aprendizado da linguagem e ao imitar nossos códigos mais reprimidos, eles nos substituíram.
Porque em todo o planeta não existe uma única criatura que se compare a uma pessoa não só na aparência, mas também nas qualidades intelectuais e volitivas. Exceto o macaco.
Narrado em primeira pessoa dentro de uma estrutura narrativa baseada em um duplo processo, pois há um flashback temporal (a história de Ulysses é anterior à sua leitura por Phyllis e Jinn) que é acompanhado por uma ?mise en abyme? da história (a leitura do manuscrito do protagonista faz parte da história de Phyllis e Jinn), esse romance teve de tudo e mais um pouco: o suspense bem elaborado, a minha empatia pelo narrador, o humanismo de certos macacos, mas também a sua crueldade, o contexto político e social, a reflexão sobre o que é uma civilização, o lugar da literatura e uma excelente reviravolta no final da história.
Boulle oferece um romance de antecipação caracterizado por um estilo irônico e rebelde destacando-se das histórias tradicionais do gênero com cenários e técnicas marcadas pela sofisticação e pelo estranho, preferindo uma evocação poética do espaço.
Quanto ao universo da história principal ? Soror ? é uma cópia carbono da Terra: um volume equivalente para os dois planetas; uma distância de Soror a Betelgeuse semelhante à da Terra ao Sol; a mesma atmosfera composta de oxigênio e nitrogênio; uma geografia idêntica de mares e continentes.
Em suma, a mudança de cenário inerente ao gênero da antecipação só pode ser lida na inversão de papéis entre os macacos e os homens, o que atesta a intenção satírica da obra.
Contudo, o romance também multiplica os momentos intensos de qualquer história antecipatória: o espanto ? no seu sentido etimológico ? de Ulysses diante desses animais (humanoides?); emoção da caçada organizada pelos macacos; aceleração dramática dos acontecimentos; descoberta do mundo símio escravizando os humanos; surpresa com as revelações sobre o passado do planeta; o suspense da fuga de Soror e, sobretudo, o duplo choque sucessivo do desfecho são momentos que fazem desse romance o próprio exemplo de uma história de antecipação cativante.
?A leitura desse romance provocou-me várias reflexões sobre as sociedades humanas, crítica a ciência e uma sátira mordaz ao orgulho humano. É uma fábula filosófica com conotações voltairianas com um leve tom irônico.
Longe do sopro épico dos filmes, longe da rigorosa e grandiosa ficção científica de Isaac Asimov, a história de Boulle está em sintonia com os contos satíricos dos séculos XVII e XVIII como ?Cândido, ou o Otimismo? de Voltaire, ?Cartas Persas? de Montesquieu ou ?As Viagens de Gulliver? de Jonathan Swift.
Deixem-me lhes dizer que o romance tem uma fina cortina de humor ácido, tingida de uma certa escuridão. A passagem mais extrema do livro nesse sentido é quando acontece as relações sexuais entre Mérou e Nova, a mulher colocada em sua cela por macacos instruídos - no sentido literal -, curiosos para analisar sua cópula.
Embora despreze essa mulher primitiva aparentemente desprovida de inteligência, o herói não resiste aos seus impulsos, ilustrando assim aos cientistas o seu caráter verdadeiramente ?animal?. Admito que essa cena me pegou desprevenido.
Digo-lhes também que será difícil esquecer um livro como esse. Ele mordeu a minha memória com as duras presas afiadas de um gorila macho adulto. A narrativa do autor não titubeia em momento algum, movendo-se com rapidez e firmeza para nos colocar diante de Ulysses, uma fera capturada, que é tratada como um animal, e não como um ser civilizado.
Boulle deu-nos uma oportunidade única de estar na pele de animais, de nos tornarmos uma feia caricatura de seres superiores - macacos, utilizando assim uma metáfora muito poderosa e eficaz para a substituição da identidade, que nos permitiu ir além dos limites habituais e mudar a psicologia do ?rei da natureza?.
Por fim, outro ponto muito importante a ser mencionado desse romance reside nos critérios de razoabilidade. A razoabilidade não é apenas a capacidade de pensar abstratamente, escrever poesia ou dominar a linguagem e a escrita.
Não, racionalidade também significa a capacidade de não cair em um estado animal, e agir de maneira humana e moral. Algumas pessoas são piores que os macacos mais vis. Alguns chimpanzés são mais espertos do que os mais malandros dos homens.
Portanto, no final das contas, não importa quem será o portador da inteligência, um homem ou um macaco, o que é muito mais importante é o nível de sua cultura e a capacidade de compreensão mútua, a capacidade de contato, amizade e assistência mútua. ?O Planeta dos Macacos? é um teste literário de humanidade e inteligência.
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