spoiler visualizarCaio.Ferreira 03/12/2019
Retrato de nossa gente em polvorosa
Chico Buarque, nosso célebre compositor e cantor, também escreve romances. E há muitos anos o faz. Esse seu lado escritor ressoou na mídia esse ano mesmo com o Prêmio Camões que o condecorou vencedor. Particularmente, apesar de saber que existiam, não havia lido nenhum de seus livros. O documentário sobre sua vida, “Chico: artista brasileiro”, de 2015, explana essa outra dimensão. Não o revisitei agora, mas vagamente recordo da declaração do autor exibida no filme: via-se primeiro como escritor e depois propriamente como músico. Se não isso exatamente, era algo parecido que traduzia sua preocupação em substancialmente ser escritor.
Conhecia melhor (ainda conheço, obviamente) suas músicas e resolvi ler seu novo romance, “Essa Gente”, já agora, na época de seu lançamento. E mesmo sabendo da sua capacidade como músico, desconhecendo-o enquanto escritor, as minhas expectativas foram mais que atendidas.
O livro narra a curiosa rotina de Manuel Duarte, escritor sexagenário que no passado teve um livro de sucesso, e hoje encontra-se endividado, com a publicação de sua próxima obra em atraso. Às tardes, passeia no Leblon – bairro em que reside - em busca de inspiração literária e cotidianamente preenche sua existência se encontrando com figuras marcantes de sua vida: seu filho quase adolescente, suas ex-mulheres (com personalidades diametralmente opostas uma em relação à outra), seus conhecidos de índole questionável, dentre outras figuras que no seu caminho surgem. Seu caráter mulherengo e devasso rende momentos inusitados e inclusive cômicos para a narrativa.
O que me cativou no livro não se resume aos indícios de semelhança envolvendo o autor e personagem, mas sim o modo que o romance foi escrito. Sob esse prisma, relato: despertou tanto minha atenção que só não o li de uma vez porque não tive tempo. Ocorre que o livro não é dividido em longos e cansativos capítulos, mas em documentos organizados de forma nem sempre (mas em geral) linear. A construção dos fatos ocorre com facilidade, devendo o leitor interpretar e reconstituí-los. Em substituição aos capítulos, os documentos são variados: cartas de um personagem para outro, diálogos pontuais ao telefone, notificações extrajudiciais e ações de despejo, e principalmente, excertos do significativo diário de Duarte. O prazer de lê-las, somado à versatilidade do texto que flui (e flui muito bem), deixo para o leitor obtê-lo.
Dinamicamente, o autor esculpe o retrato de nosso Brasil atual. Por meio da descrição dEssa gente que aqui habita, e não só a gente humilde que nem tem com quem contar, fica denunciado o tumultuado retrato de nosso tempo.
Para ilustrar, o famigerado porte de armas, tema muito polêmico, é largamente contemplado durante a narrativa, e que a escrita irônica potencializa seu efeito: “[...] e logo acordo enrolado no lençol com a televisão ligada: a partir de hoje, por decreto presidencial, posso ter quatro armas de fogo em casa” (p.17). Igualmente ocorre quando Duarte caminha para se livrar de um controverso revólver, quando em contrapartida é parabenizado pela gente que visualmente o acompanha em seu percurso: “É isso aí, mestre! Tem que acabar com a raça desses bandidos! [...] Estamos juntos, guerreiro! Contamos contigo, campeão! (p.103-104). A violência policial é crítica contumaz no livro. Em certo trecho, o labrador do filho de Duarte “abocanha o jornal no chão do banheiro e começa a mastigar notícias: soldados disparam oitenta tiros contra carro de família e matam músico negro” (p. 89), trágica situação que lamentavelmente ocorreu, como é sabido.
Num excerto ficcional, porém verossímil, um assaltante com um refém, o porteiro do prédio em que estão, mobiliza toda a gente que ali passava. Criado o tumulto, a negociação da polícia com o mulato encapuzado (a questão racial não fica de fora) termina com a execução do tal bandido. Não bastasse sua morte - “deitado de costas, se contorce inteiro ao levar mais uns tantos tiros à queima-roupa” - continua exaustivamente a ser baleado, “como se mata uma barata a chineladas” (p.70). A “gente de bem”, nesse momento, aplaude e aclama os seus combativos “heróis", também linchando o corpo do representante da “gente de mal” que ali jazia. A recente canção de Chico, “Caravanas”, do álbum homônimo de 2017, retrata o mesmo tema: essa gente ocupa espaços que não os cabem, que são próprios de outra gente, e viabiliza-se a violência. Tudo isso nos deixa em polvorosa, afinal, a raiva é filha do medo e mãe da covardia, como nos transmite a própria música.
Interpreto (aliás, vivemos no Brasil de agora e se nota no livro a confirmação dessa ideia) que a frágil tolerância entre as duas gentes esmaeceu-se com os novos rumos da vivência política, imperando agora conflito e ódio escancarados, tal como descrito quando o advogado amigo do Duarte agride um mendigo que invadia a porta do clube. Abriu-se a caixa de Pandora, não se vislumbra saída. Outros temas discutidos são as dificuldades que sofrem os residentes de condomínios fechados e os moradores das comunidades cariocas: uns possuem problemas ordinários com seus vizinhos, outros correm risco de vida constantemente. Além do oportuno neomacartismo à brasileira, o advento das igrejas neopentecostais é outro assunto sugestivamente apresentado por intermédio de um arco narrativo bizarro.
Quanto ao desfecho (reitero o alerta de spoiler): desde o momento em que se frisou o lado ciumento de Agenor, o salva-vidas marido da derradeira musa de Duarte, já imaginava que seria o personagem principal assassinado pelo sujeito que anteriormente o salvou. Para minha surpresa, o final não permite a conclusão de nada em definitivo. Tudo bem. Mesmo assim, recomendo o livro a todos que procuram uma leitura crítica e igualmente cativante.