belarules 20/06/2023Para pensar a pós-modernidade, e reclamar por vezes o direito de ser infeliz. Gostei mais de Admirável Mundo Novo do que estava esperando gostar! Como é natural que aconteça depois de ler outro clássico muito parecido pouco antes, fiquei o tempo inteiro comparando esse livro com 1984, sempre tendo em mente que eles tem 17 anos de diferença. Henry Ford e o Big Brother são muito parecidos, na verdade, apesar das diferenças de organização na sociedade.
Como às vezes acontece, acabei pensando demais em um aspecto não central do livro, que é a relação de John, O Selvagem com a descoberta da leitura. Para ele, encontrar as palavras de Shakespeare nos livros foi como dar forma e voz a sentimentos que antes existiam, mas não eram tão claros e nem tão fortes. Foi como ter palavras para interpretar o mundo e assim, desafiá-lo. E voltando para as semelhanças com 1984: como é curioso e nem um pouco surpreendente perceber como, em sociedades altamente controladas, divididas e construídas de forma injusta, a leitura é cerceada ou desencorajada. Sempre haverá algo muito melhor do que a leitura, algo muito mais prático, mais fácil, menos perigoso e subversivo. O Selvagem teria falado por anos, relacionando a realidade que via com o que leu em Shakespeare, mas ninguém o teria entendido, pois as pessoas foram criadas (literalmente) para não conseguir entender. Apesar de todo o discurso simbiótico da sociedade, imagine a solidão! O Selvagem nunca poderia fazer parte de nada daquilo. (Por outros motivos também, incluindo seu próprio condicionamento social que fica meio implícito)
Pensei muito na divisão modernidade x pós-modernidade lendo esse livro. Huxley fala bastante do Fordismo, que nos dias de hoje foi substituído por um sistema mais sutil, que se entranha muito mais facilmente na nossa forma de pensar. Os mecanismos de condicionamento não precisam mais ser tão abruptos e complexos, eles estão por aí todos os dias, escondidos e mais eficazes do que a gente imagina. A produção na verdade pouco importa hoje, mas consigo imaginar Admirável Mundo Novo sendo reescrito hoje, trocando a unicidade pelo individualismo, talvez, dando ênfase ao fortalecimento da marca ao invés da produção, preservando o escape da realidade e o desencorajamento a leitura e a distorção da informação. Por algum motivo (óbvio), tenho a impressão de que a história hoje seria um pouco mais bizarra. Algo parecido e tão apavorante quanto o episódio mega famoso de Black Mirror chamado “Nosedive”, ou talvez aquele outro chamado “Fifteen Million Merits” (foi só o que eu pensei quando o sofrimento e os ideais do Selvagem foram transformados em espetáculo, literalmente)
Enfim, só não foi mais chocante porque o Fordismo está hoje mais distante de nós e foi substituído por um sistema mais perverso ainda. Ainda assim, vale muito a pena lê-lo com atenção e fazendo um zilhão de anotações.
Ps: Não consigo explicar o quanto é bom ler esse livro tendo lido bastante Shakespeare. Impagável a minha cara quando eu reconhecia alguma frase, especialmente de A Tempestade. John certamente faz o cosplay dele de Calibã!