Nissen Piczenik, um judeu do distante vilarejo de Progrody, vive como vendedor de colares e adornos feitos de corais. Homem honesto e comprometido com seu ofício — criar e comercializar suas belas “joias vivas” —, Piczenik nunca ousou sair de sua vizinhança. Porém, seduzido pelo antigo desejo de conhecer o mar, ele mergulha em uma aventura ao desafiar sua rotina e deixar para trás tudo aquilo que cultivou até então: sua freguesia e seu impecável artesanato. A breve ausência coincide com a chegada de um novo comerciante, um húngaro que milagrosamente vende corais mais belos e baratos. Assim, toda uma vida de comedimento se transforma em tragédia: ao deixar o lar para saciar o desejo pelo desconhecido e abandonar uma rotina sufocante, Piczenik é tomado pela inebriante vida de Odessa, uma grande cidade portuária com incontáveis navios; ao retornar, o analfabeto vendedor de colares de corais rende-se à chegada ao novo representado por seu concorrente poliglota de Budapeste.
Até a fatídica viagem, o personagem judeu Nissen Piczenik é o avesso do autor judeu Joseph Roth. A vida repetitiva, simples e completamente íntegra do Piczenik das primeiras páginas do texto é o inverso exato da de Roth, um típico outsider: judeu, exilado, altamente individualista, profundamente cosmopolita, que adorava a controvérsia e que viveu em hotéis durante boa parte de sua vida. Piczenik, em sua busca pelo desconhecido e sua paixão pelo mar, supera a sensação de não pertencimento àquela rotina de artesão e vendedor de joias feitas de corais para aproximar-se de seu criador. Sua busca é a mesma de Roth, ele procura o novo, o diverso e o desconhecido.
Assim como muitas das obras de Joseph Roth, O Leviatã combina culturas diversas. A história se passa em um vilarejo fictício da Europa Oriental, onde comerciantes judeus — com suas sinagogas, vestes de reza, jejuns e festas — convivem com camponesas e camponeses russos. Mas além da estética, as ideias judaicas estão presentes na transformação do protagonista, na citação do monstro marinho do Velho Testamento e na tentação do diabo representada pelo cosmopolita húngaro.
O texto é recheado de encontros interculturais. A história se passa em uma região do interior russo em algum momento entre a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e a primeira Guerra Mundial (1914-1918). Nela, o reino czarista se apresenta nos cenários da viagem e na figura do marinheiro Komrower, que leva à província o aroma de São Petersburgo ao contar as histórias fantasiosas das forças navais russas. No trem para Odessa, Piczenik tem contato com um comerciante de pérolas da realeza, faz escala em Kiev, conhece o Mar Negro e até visita uma fragata em companhia de um oficial da marinha russa. Finalmente, a história também está calcada na cultura alemã, pois foi escrita nessa língua por um autor austro-húngaro.
Essa parábola aborda um problema moral bastante claro. O motivo da tentação leva um homem honesto a revelar seus valores e ideais. No caso de Piczenik, além do seu amor pelos corais, há também a sua identidade judaica.
A tentação é representada pelo negociante húngaro Jeno Lakatos, cuja aparência se assemelha à concepção cristã do demônio: cabelos negros, olhos escuros, magro e o odor e a fumaça característicos quando seus corais são queimados. Mas o demônio mais proeminente é o próprio Leviatã da mitologia do Velho Testamento, que repousa no fundo do oceano, invencível senão perante o próprio Deus. Na narrativa, ele é o senhor do mar que cativa Piczenik quando este decide deixar sua terra natal e suas raízes judias.
Literatura Estrangeira