"Quanto mais a vida cotidiana é ficcionalizada e estetizada com recursos midiáticos, mais avidamente se procura uma experiência autêntica, verdadeira, não encenada. Busca-se o realmente real ou, pelo menos, algo que assim pareça. Uma das manifestações dessa fome de veracidade na cultura contemporânea é o anseio por consumir lampejos da intimidade alheia. Em meio ao sucesso dos reality-shows e das redes sociais, o espetáculo da realidade faz sucesso: tudo vende mais se for real, mesmo que se trate de versões performáticas de uma realidade qualquer. A internet é um palco privilegiado desse movimento, com a proliferação de confissões reveladas por um eu que insiste em se mostrar sempre ambiguamente real. Mas o fenômeno é bem mais amplo e atinge diversas modalidades de expressão artística e midiática."
Paula Sibilia
Na passagem do século XX para o XXI, um conjunto de novos hábitos suscitou perplexidades e polêmicas. Por toda parte surgiam canais que permitiam tornar públicos os diversos aspectos daquilo que até então se considerava o mais privado de cada um: a intimidade. Em pouquíssimos anos nos familiarizamos com fenômenos hoje tão assentados como os reality-shows e os blogs, bem como as redes sociais, os vídeos e as selfies que inundam a internet.
Neste livro, que é reeditado agora em versão atualizada e definitiva, Paula Sibilia elaborou uma instigante reflexão sobre tais novidades da sociedade tecnologizada. Mas, em vez de colocar o foco nos aparelhos que lhes dão vazão e que costumam deslumbrar com suas sedutoras potencialidades, ela prestou atenção a outro fator envolvido nessas interações: os usuários. Sob essa perspectiva, a análise que se oferece aqui sugere que tais práticas não só demandam como também estimulam o desenvolvimento de modos inéditos de ser e estar no mundo.
O que está acontecendo, portanto, seria uma importante transformação histórica, que inclui ingredientes de todo tipo, mas aponta, sobretudo, para uma notória mutação das subjetividades. A fim de constatar essa metamorfose, a autora examina o veloz distanciamento que se produz nos últimos anos nos modos tipicamente modernos de se relacionar consigo, com os outros e com o mundo. Por isso, os instrumentos que eram utilizados de forma prioritária para a construção de si do diário íntimo e as trocas epistolares até os romances e a psicanálise, por exemplo estão sendo eclipsados pelas tecnologias digitais de comunicação em rede.
Nesse cenário recentemente sacudido, perde força a crença numa interioridade oculta, embora essencial e mais verdadeira que as vãs aparências, e que se acreditava hospedada no âmago dos indivíduos. Esse eixo agora se desloca em direção a tudo aquilo que se vê: o aspecto físico e a imagem pessoal de cada um, sem dúvida, mas também o comportamento visível e a performance cada vez mais compartilhada nas telas. Trata-se, afinal, do triunfo da era do narcisismo. Pois o que costuma brilhar em todas essas manifestações tão contemporâneas que, além das mídias mais tradicionais e as interativas, também contempla os diversos campos artísticos e a vida cotidiana de qualquer um é um espetáculo ao mesmo tempo monótono e estridente, que ainda está em plena expansão: o show do eu.
Christian Ferrer
PAULA SIBILIA é ensaísta argentina residente no Rio de Janeiro. Estuda diversos temas culturais contemporâneos sob a perspectiva genealógica, contemplando as relações entre corpos, subjetividades, tecnologias, manifestações midiáticas e artísticas. Além deste livro, lançado originalmente em 2008 e aqui apresentado em versão definitiva, também publicou Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão (Contraponto, 2012) e O homem pós-orgânico: a alquimia dos corpos e das almas à luz das tecnologias digitais (Contraponto, 2015). Atualmente é professora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde desenvolve trabalhos com o apoio do CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa) e da Faperj (Jovem Cientista do Nosso Estado).
Psicologia