Marc 06/09/2020
Provavelmente se pode dizer de Will Eisner algo muito próximo ao que Walter Benjamin dizia de Nikolai Leskov, que se tratava de um autêntico narrador. Aquele que trouxe um tipo de escrita aos quadrinhos e que soube desenvolver essa forma de expressão como nenhum outro, também é um narrador verdadeiro e raro. Por esse motivo, Eisner é um autor de outros tempos, muito anti-moderno, muito diferente de tudo que aprendemos a apreciar. Suas histórias não passam pelo referendo do Eu, pela personalidade como medida de todas as coisas; mesmo descrevendo histórias pessoais, é possível enxergar o peso da história, ou melhor, da História, dos movimentos da sociedade em cada pequeno evento.
A característica mais marcante desse enorme encadernado — com 3 história voltadas à famosa avenida Dropsie, uma criação do autor que simboliza a vida urbana de várias décadas do século XX —, é justamente a maneira como consegue manejar uma infinidade de personagens, todos contribuindo de alguma forma para a história central. Quando o chamado solipsismo (ou a narratofobia, para usar o termo de Rodrigo Gurgel) domina amplamente a literatura e já contamina as HQs, inclusive as de super-heróis, é sempre um enorme prazer encontrar um autor preocupado em contar uma história e não em por para fora suas frustrações e psicoses. A idade de Eisner ao iniciar esse tipo de trabalho certamente contribuiu para isso, porque ele já tinha 65 anos quando se dedicou a esse tipo de escrita de HQs.
Por essa razão, como uma pessoa que já domina amplamente a atividade, cada trecho é mínimo em tamanho, às vezes cerca de uma página ou menos, mas com muita informação e significado em cada quadro. Quem pensa que uma só leitura é o bastante, vai perder muito tanto em termos de qualidade quanto do próprio significado de cada página. A capacidade de sintese de Eisner é assustadora e isso contribui para uma narrativa leve, mesmo nos momentos mais difíceis, quando mostra a baixeza a que podemos cair.
Não sei dizer se a tentação de reduzir o mundo a impressões sobre a personalidade de cada personagem foi grande para o autor, mas o fato é que ele não cedeu em momento algum. Tudo o que os homens foram capazes de criar de pior aparece nessas páginas, mas nunca vemos os personagens se lamentando e reduzindo os eventos ao que causam em seus sentimentos. Por isso, como disse, a impressão de uma narrativa leve, onde os dramas passam rapidamente. Na verdade, como já estamos todos acostumados ao solipsismo — essa verdadeira doença que tomou conta das obras escritas —, soa estranho ver personagens que não exigem a simpatia do leitor, que não o confrontam a cada página, tentando forçar uma identificação por falsa humildade, onde a exposição das mazelas serve mais como orgulho de ser tão baixo e fraco (daí a necessidade de que simpatize). Essa é a verdadeira armadilha da literatura contemporânea, que parece exaltar a humildade, mas faz apenas com que o vício, a imoralidade e a falta de caráter sejam normatizados como o verdadeiro padrão humano. Deixa-se de almejar grandes realizações para mostrar apenas que a condição humana está fadada à mediocridade e isso não pode ser mudado... Ora, se os personagens não fazem isso é porque o autor não pede a simpatia do leitor, ele quer apenas contar suas histórias, mostrar a vida urbana que conheceu tão bem nas cidades americanas e suas transformações e nada mais. Eisner não mendiga a simpatia do leitor, não faz chantagem emocional e, por esse motivo, entrega as melhores histórias em quadrinhos de todos os tempos. Certamente ele pertence a um tempo diferente do nosso, infelizmente, daí a importância de lermos sempre suas obras, que servem para nos resgatar do mar de mediocridade a que estamos expostos diariamente...