Preocupado com a acusação, então injuriosa, de ser incorrigível comunista, nos anos mais duros da hoje celebrada “revolução democrática de 1964”, ele resolveu fugir para a Europa e, quem sabe até, pedir asilo num país da Cortina de Ferro. O navio, um petroleiro russo legítimo, estava fundeado na Baía de Todos -os -Santos, e numa noite de lua lá se foi o autor, falso comunista, subindo a escada de portaló. Olhou pra cima e se assustou: marinheiros mal -encarados ― havia meses longe de casa, barba por fazer, palito no canto da boca, carentes de conjunção carnal e com olhos pidões ― observavam, com indisfarçável e despudorado interesse, o molejo de suas partes traseiras ao subir a escada. O medo de ser enrabado foi maior que dos tabefes de milicos pela falsa acusação de ser comunista, e ele refugou. Foi parar, graças ao apadrinhamento de Antônio Carlos Magalhães, em Todavia, uma imaginária cidade do Recôncavo Baiano, numa sinecura como assessor do prefeito ― um doido manso, devoto irresoluto e apaixonado do caudilho baiano, que, para ele, deveria ser aclamado “presidente da República da Bahia” ― e ele, o prefeito, “governador de Todavia”. Levar ACM a romper com a Federação, instaurar a República da Bahia, e nela o Estado de Todavia, e promover a estados também os demais municípios baianos, é a trama que aqui se conta. República dos Mentecaptos, de Fernando Vita, como se diz na Bahia, é de se embolar de rir. De certa forma, é uma aventura de autoficção, contada num texto primoroso, que não deixa o leitor desgrudar ― e ele próprio, o leitor, se torna um influente personagem da trama. O estilo e a construção narrativa da história são únicos de Fernando Vita, e encantam e envolvem o leitor. Ao descrever as aventuras do alcaide Augusto Magalhães Braga, o AMB, ele segue na mesma pegada de Cartas Anônimas e O avião de Noé, suas duas últimas obras, que também têm como pano de fundo a surreal cidade de Todavia. Fernando Vita viveu muitos anos na “cozinha do poder”, em Brasília e em Salvador, como braço direito ― e às vezes o esquerdo ― de Antônio Carlos Magalhães. Portanto, por conhecimento de causa, como ninguém sabe construir personagens como dona Assunção, primeira -dama e mãe de um desparafusado filho; Belariana, a rapariga oficial ― que não se furta de enfeitar a cabeça do poderoso; a assessora de “inteligência”, dona Taiai Marins, que, telefonista, xereta as conversas de todo mundo e dissemina fofocas; do jornalista amigo que publica elogios; ou do chefe da Casa Militar, tenente -coronel Elson das Mercês, um sergipano que está sempre pronto a dar um corretivo nos adversários políticos da autoridade. Vita, com mais esta obra, põe os dois pés na cena literária brasileira. E nos presenteia com uma narrativa de realismo fantástico bem própria de um García Márquez, que, se levada a sério, chega -se à conclusão de que certo estava Octávio Mangabeira, que pregava: “Pense num absurdo, e na Bahia haverá precedente”.