“Certa manhã, Gregor Samsa despertou e viu-se
transformado num enorme inseto.”
Franz Kafka, Metamorfose
“A cidade murada e protegida por alarmes eletrônicos, a cidade
globalizada, trancada em seus imóveis inteligentes, a arrogância da riqueza
encarnada no biquíni à venda nos Jardins que custa o mesmo que uma moradia numa
favela do subúrbio. Cada habitante sabe disso e vive com aquilo que está ao seu
alcance.”
Assim começa a apresentação de Saídas de emergência, livro organizado por
Robert Cabanes, Isabel Georges, Cibele S. Rizek e Vera da Silva Telles, que tem como foco as relações
entre os habitantes da maior cidade brasileira. Os textos de diversos autores
que compõem a coletânea – resultado de longas pesquisas
publicadas originalmente na França, em 2009, e agora em português pela Boitempo Editorial – revelam as faces da moeda chamada São
Paulo: sexo, drogas e rock ‘n’ roll, emprego,
desemprego, violência pública e violência privada. “Os relatos evidenciam as
esperanças e as decepções cotidianas, sem ignorar as grandes transformações
políticas, econômicas e sociais dos últimos vinte anos”, afirma Michel Pialoux, autor da orelha do livro.
O professor Francisco de Oliveira, autor do prefácio, imaginou para a obra uma
forma ao estilo de Kafka: “O que os artigos desse livro indispensável nos
descrevem são pessoas transformadas em insetos na ordem capitalista da
metrópole paulistana”. No entanto, o caminho escolhido pelos autores dos textos
para apresentar as experiências urbanas em prosa foi outro: “são gramscianos”, diz Oliveira, “na medida em que exploram
todas as posições, todos os ângulos, todas as expressões e modos de ganhar a
vida – na verdade, de ganhar a morte – dos moradores de Cidade Tiradentes, com
algumas incursões em Guaianases e outras periferias da cidade”.
Fruto do longo trabalho coletivo de uma equipe composta por pesquisadores mais
experientes ao lado de outros mais jovens, de origens e gerações diferentes, os
21 artigos se referem a diferentes “saídas de emergência” e a uma
multiplicidade de ângulos de abordagem. “Trata-se da maneira como aqueles que
estão submetidos às relações de dominação na cidade tentam superá-las, às vezes
procurando construí-las em escala maior que a de seu meio social, por percursos
que passam por formas de trabalho e atividade, religião, vida em comum e
recomposições familiares”, explicam os organizadores do livro. As estratégias
de vida, observadas nas pessoas e nas famílias, representam modos tanto de
fugir da responsabilidade direta do trabalho quanto de ressignificá-lo
por meios indiretos. O tráfico, por exemplo, é referência econômica (garante a
sobrevivência de muitas pessoas), social (ajuda pessoas ou associações) e moral
(impregna a vida cotidiana com seus modos de pensar e agir). Frente à complexa
realidade urbana, os pesquisadores não fantasiam a honra e o caráter de suas
“personagens”; nenhum afirma que o Jardim Maravilha é uma maravilha. “A
consciência crítica atenta não resvala em glorificação da pobreza e de sua
situação na cidade capital do gigante emergente”, reconhece Oliveira. “A
fronteira entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito, o formal e o
informal, não é erguida por eles: é a fantasia jurídica do capitalismo ‘globalitário’.”
Trechos do livro
“No início, o relato de Ismael revela leveza e
confiança na vida, pouco consciente de seu meio. Sua maneira de contar sua vida
em São Paulo muda: ele sente a necessidade de se interrogar, de se
autocriticar, de refletir a respeito de sua relação com o outro para chegar a
seus objetivos, de se preocupar com o outro enquanto indivíduo (sua filha, sua
esposa). A dificuldade dessa reflexão implica a observação de que a moral se
perde, tanto a individual familiar quanto a religiosa. Se nada mais é como
antes, nem no tempo nem no espaço, o que lhe resta é continuar a trabalhar, sendo
mais atento com o salário, catando nas ruas quando não há trabalho,
acompanhando as doenças, seguindo os filhos numa longa adolescência, sem
esperar nada da política ou da religião. Já que ele não “engole” mais a vida,
pelo menos não se deixa engolir por ela.”
“A renovação do setor associativo (habitação, saúde, educação, alimentação) é
alimentada por formas de descentralização, privatização e terceirização dos
serviços públicos nos bairros de baixa renda, assim como pelo esfacelamento dos
antigos movimentos reivindicativos – já que o neoliberalismo dominante incita
essa população a agir, em vez de reivindicar. Essa ação repousa, em grande
parte, na atividade das mulheres desses bairros. As cooperativas constituem
outra vertente desse novo tecido de atividades sociais e econômicas. A
renovação do setor informal e associativo corresponde também ao desaparecimento
de amplas parcelas do emprego formal (serviço e indústria), em especial entre
as atividades que estão em via de se informalizar (confecção, automóvel,
terceirizações em todos os setores), à emergência de formas de trabalho pouco
controladas (telemarketing) e ao desenvolvimento de atividades antigas não
formalizadas (coleta e reciclagem do lixo).”
Autores
Carlos Freire da Silva, Mônica Virgínia de Souza, Rafael Godói, Daniel Veloso
Hirata, Gabriel de Santis Feltran,
Tatiana de Amorim Maranhão, José César Magalhães, Silvia Carla Miranda
Ferreira, Ludmila Costhek Abílio, Daniel De Lucca Reis Costa, Eliane Alves da Silva, Ronaldo de
Almeida, Ariana Rumstain, e Yumi
Garcia dos Santos, além dos próprios organizadores.
SUMÁRIO
Prefácio
Contos kafkianos
Francisco de Oliveira
Perspectivas
Robert Cabanes e Isabel Georges
PARTE 1 – TRABALHO
1. Proletários em meio à tormenta neoliberal - Robert Cabanes
2. Viração: o comércio informal dos vendedores ambulantes - Carlos Freire da
Silva
3. Caminhos cruzados: migrantes bolivianos e o trabalho informal na indústria
de confecções em São Paulo - Carlos Freire da Silva
4. Entre discriminação e reconhecimento: as trabalhadoras domésticas de São
Paulo - Isabel Georges
5. A coleta e o tratamento de lixo - Robert Cabanes e
Mônica Virgínia de Souza
6. Trabalho informal e representação sindical - Isabel Georges
PARTE 2 – TRÁFICOS
7. Ilegalismos populares e relações de poder nas
tramas da cidade - Vera da Silva Telles
8. Gerindo o “convívio” dentro e fora da prisão: a trajetória de vida de um
agente penitenciário em tempos de transição - Rafael Godói
9. Vida loka - Daniel Veloso Hirata
10. Debates no “mundo do crime”, repertórios da justiça nas periferias de São
Paulo - Gabriel de Santis Feltran
PARTE 3 – ASSOCIAçÕES 11. O sentido político das
práticas de responsabilidade social empresarial no Brasil - Tatiana de Amorim
Maranhão
12. As entidades sociais e o surgimento de uma gestão concorrencial do
engajamento cívico - José César Magalhães
13. Atores do trabalho social: continuidades e descontinuidades - Silvia Carla
Miranda Ferreira
14. A gestão do social e o mercado da cidadania - Ludmila Costhek
Abílio
15. Sobre o nascimento da população de rua: trajetórias de uma questão social -
Daniel De Lucca Reis Costa
PARTE 4 – VIVER JUNTO E
VIVER PARA SI
16. Intervenções urbanas recentes na cidade de São Paulo: processos, agentes,
resultados - Cibele Saliba Rizek
17. Ocupação irregular e disputas pelo espaço na periferia de São Paulo -
Eliane Alves da Silva
18. Evangélicos no trânsito religioso - Ronaldo de Almeida e Ariana Rumstain
PARTE 5 – Espaço
Privado, Espaço Público
19. “Trabalhadores” e “bandidos” na mesma família - Gabriel de Santis Feltran
20. Interrupções e recomeços: aspectos das trajetórias das mulheres chefes de
família monoparental de cidade Tiradentes - Yumi Garcia dos Santos
21. Qual dialética é possível entre o espaço público e o privado? - Robert Cabanes
Conclusão
Figuras e laços de experiências sociais: mediadores e passagens - Robert Cabanes e Isabel Georges