Em plena região subsaariana, o Sudd é uma das maiores áreas inundadas do mundo. Seus canais tortuosos e incertos e as grandes massas vegetais que bloqueiam a navegação fazem do Sudd um labirinto móvel. É nesse reino de fronteiras instáveis que parte o navio La Nave numa odisseia na qual os conceitos de civilidade se tornam tão movediços quanto as fronteiras da inóspita região. No aclamado romance do catalão Gabi Martínez, Sudd é simultaneamente título e personagem de uma trama comparada a clássicos da literatura como O coração das trevas, de Joseph Conrad, O deserto dos tártaros, de Dino Buzatti e Os nus e os mortos, de Norman Mailer.
Fruto de uma viagem feita pelo autor no Nilo, desde suas fontes até Alexandria, Sudd é um magnífico romance de aventura e, ao mesmo tempo, uma parábola da civilização. O romance narra os rumos de uma expedição criada com fins pacifistas, reunindo empresários, políticos e representantes de tribos locais, numa travessia pelo coração da África, região que viveu em conflito por mais de vinte anos. No caminho, encontra-se uma zona pantanosa de enormes proporções e fronteiras mutantes. Um terreno que não se deixa desbravar. Uma geografia hostil e devoradora. O Sudd.
Poucos dias após o início da viagem, o capitão do navio morre numa emboscada miliciana, a tripulação se vê sem o GPS, sem sinal nos celulares e à deriva entre as inúmeras ilhas do pântano. Os tripulantes não têm outra opção a não ser aliar-se, como numa pequena Babel. Chineses, árabes e ocidentais, ricos e pobres, feridos e sãos precisam pôr de lado suas diferenças com o comum objetivo de sobreviver.
Desta situação, emerge a figura do tradutor, um eterno secundário que, graças ao domínio dos idiomas, descobre seu poder sobre a tripulação do navio. O anônimo protagonista e narrador da última obra de Gabi Martínez, um tradutor espanhol, descobre o poder que tem sobre petroleiros, homens de negócios e a população comum. “Em La Nave, ninguém estava do meu lado. Mas todos dependiam de mim.”
O que começa como uma narrativa de viagem se transforma numa trama psicológica. O Sudd se desenvolve como uma personagem à parte, que é descrito não só por suas características físicas, mas por suas “condições emocionais”. Segundo o autor, “o Sudd é uma metáfora moderna sobre a deriva do ser humano num mundo labiríntico que se move sem cessar. Além disso, põe em primeiro plano um tema muito atual, o diálogo e as disputas entre pessoas de civilizações diferentes, de culturas muito distintas.”
Com perfeita tensão dramática e manejo do suspense, Gabi Martínez coloca o leitor neste labirinto de terra e água, fazendo-o participar de angústias e incertezas, mas também da luz e dos odores da África profunda.