As cidades são, notadamente, reduto dos homens, em que às mulheres é imposto o status de segunda classe. Por meio de uma geografia de exclusão real e material, as mulheres encontram no ambiente urbano entraves e afirmações que reforçam papéis fundamentais de gênero e subjugam corpos femininos. Este profuso debate sobre a relação entre as mulheres e a cidade está presente na obra da geógrafa canadense Leslie Kern, autora do livro Cidade feminista, lançado agora no Brasil pela editora Oficina Raquel. Segundo Kern, as cidades foram pensadas para apoiar formas familiares patriarcais e funções sociais segregadas por gênero. Para desvendar tais mecanismos de poder e pensar alternativas, Kern reflete a partir de questões que emergem daquilo que chama de experiência corporificada de pessoas “que se incluem na categoria dinâmica e mutante de mulheres”.
Misturando experiência em primeira pessoa, cultura pop e um diálogo contundente com a teoria, Kern se propõe pensar não apenas pelo viés do marcador de gênero, mas também a partir de raça, classe, sexualidade e capacidade, em um olhar interseccional sobre as desigualdades urbanas. Em meio a temas como transporte coletivo, segurança, acesso a banheiros públicos, gentrificação, desenho urbano e organização social como um todo, Kern assume uma posição feminista sobre as cidades. Para ela, esta postura incide sobre a luta contra um conjunto emaranhado de poder. Afinal, uma vez que as mulheres são moldadas por uma sociedade patriarcal, “suavizar as arestas dessa experiência por meio do design urbano não desafia o patriarcado em si”, então reivindicar é preciso. Ademais, Kern nos lembra que a arquitetura das cidades busca esconder a violência estridente do capitalismo. Por meio de arranhas-céus e altas construções, a cidade se refere não apenas ao simbolismo do falo, em menção aos homens, mas, em sua verticalidade, trata de expressar um ícone de poder por meio do “caráter masculino do capital”.
Para criar diferentes futuros urbanos, sem desigualdade, violência e privação, Kern aponta que a esperança é ter conversas sobre gênero, feminismo e vida na cidade, para assim encontrar formas de agir que as tornem espaços diferentes. Pensando nisso, a autora aborda a cidade pela perspectiva das mães e cuidadoras (pensando acolhimento e planejamento urbano), das amigas (abordando liberdade e lazer), da mulher sozinha (e as condições de se estar sozinha na cidade), a cidade do protesto (do direito à cidade e do ativismo) e a cidade do medo (sobre vigilância, assédio, cultura do estupro e outras ameaças, as reais e as inventadas para assombrar). Em meio a uma leitura profunda e original sobre as cidades, Kern aponta caminhos, gera indagações e nutre uma força afirmativa – para ela, “lugar da mulher é na cidade”, e está na hora de transformar este lugar.
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