A poesia de Marília Garcia está cheia de perguntas. Perguntas são uma faísca. E estão cercadas de ruído, hesitação e vontade de escuta. Você verá que os dois poemas desta reedição de Engano geográfico (que inclui Paris não tem centro) começam pela fala de outra pessoa. E é a voz do outro que os nomeia: “paris não tem centro / ela me disse”; “é um engano geográfico estar aqui / ele diz”. Então começo esta orelha dizendo que Marília Garcia escreve escutando.
Mas digo também que ela escreve caminhando e registrando. “a gente sobe a rua / notre-dame-de-lorette / eu gravo as pessoas / os cafés os carros a neve / os prédios”. Entre o documentário e a ficção, esses textos são como filmes – estão próximos dos procedimentos do cinema de Agnès Varda, para quem o acaso era um roteirista. A poeta está sempre em trânsito para escrever incorporando os acidentes, os enganos geográficos e os desvios, que não conhecem um centro.
Se você encostar o seu ouvido neste livro vai ouvir um tique-taque arrítmico. O que é esse som confuso que fazem as setas do tempo aqui?
O som da rememoração, que muda as experiências do passado à luz do presente, e é por elas transformada. Esses tempos sobrepostos agem um sobre o outro. Se é assim, esses “dois poemas franceses” (e outros da obra de Marília Garcia) precisam ser escutados por um país como o nosso, que evita lidar com seus fantasmas. O passeio da poeta é uma dobra espaço-temporal – é esse o seu poema.
O que é um passeio, digo, um poema que se dobra sobre si mesmo? É um poema sem fim. O último verso se cola ao primeiro, como um ouroboros que come a própria cauda. Além disso, não terminam de se reescrever no tempo. Marília os publica em papel e em voz ao longo dos anos, e incorpora os acidentes dessas apresentações ao “original”. O acaso é a sua melhor poética. Esses versos não sobrevivem, mas vivem: mudam, sem fim, no tempo. O original está no futuro.
“O traçado de uma cidade é obra do tempo mais que de um arquiteto”. Essa frase do arquiteto Antoni Rovira i Trias, citada neste livro, se aplica à poesia de Marília. Pois seu traçado também tem a mão do tempo – coautor desses poemas. E da sua vida, aliás. Ele está aqui. Você consegue ouvi-lo?
Rafael Zacca
Poemas, poesias