Todos os contos

Todos os contos Clarice Lispector


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Prefácio e organização de Benjamin Moser




O argentino Ricardo Piglia – crítico e narrador que em termos gerais podemos definir como um “especialista da leitura”, que sempre tem em mente a ideia da tradição literária – disse numa entrevista que Clarice Lispector parece uma escritora de outro planeta, no sentido de que não se pode afirmar facilmente que sua literatura é brasileira. Acrescente-se: nem com a literatura de qualquer outro lugar.

Clarice Lispector é justamente um mundo – ou o mundo. A edição de Todos os contos, organizada pelo pesquisador e biógrafo Benjamin Moser, reunindo pela primeira vez em um só volume todos os relatos da autora de Laços de família e Felicidade clandestina, investe o leitor na qualidade de explorador desse planeta que, pode-se ter uma certeza além da ciência, é demasiadamente humano. Habitado por bichos, homens e sobretudo mulheres, que se revelam, nas mãos de Clarice, maravilhosos em meio à alegria e ao horror da existência.

Originalmente, a coletânea saiu nos Estados Unidos (The complete stories, New Directions, com premiada tradução de Katrina Dodson), e foi selecionada pelo jornal The New York Times como um dos 100 melhores livros de 2015. É importante pedra na pavimentação da carreira internacional de Clarice Lispector, cujo impulso nos últimos anos tem sido notável. Antes restrita aos meios universitários, a escritora radical, mas sempre apaixonante, alcança aos poucos um público cada vez maior.

São 85 contos. Uma das razões para que tal reunião nunca tenha acontecido antes – nem no Brasil – é uma particular história de edição, que registrou variantes dos escritos da autora durante toda sua vida: ela tinha o hábito de reciclar obras antigas e publicá-las em novos formatos. Além disso, o organizador Benjamin Moser optou por montar uma ampla rede: “Clarice Lispector não respeitava os limites entre os gêneros. Muitos de seus textos foram apresentados como jornalismo, mas são claramente ficcionais, ao passo que muitos daqueles que foram publicados como ficção podem ser classificados de ensaios ou relatos memorialísticos.”

A obra é uma viagem, desde o primeiro conto, publicado aos 19 anos, até a implosão intelectual e sexual da artista à medida que se aproximava da morte. E um retrato da autora, bela mulher de diplomata, alta e loura, longas pernas que se deixavam fotografar na Praia do Leme, mas também a filha de imigrantes pobres do Leste Europeu e mãe de classe média que, separada do marido, teve de se virar para ganhar a vida – trabalhou como jornalista de moda, beleza e comportamento, usando pseudônimo. Tudo no livro evoca seu “fascínio feminino” e sua tragicidade de fumante inveterada que quase se mata ao provocar um incêndio ao adormecer com o cigarro aceso.

No prefácio, Benjamin Moser faz a ressalva elogiosa: “Esta literatura não é para todo mundo: até mesmo alguns brasileiros bastante cultos ficam perplexos com o fervoroso culto que ela inspira. Mas para aqueles que a entendem instintivamente, o amor pela pessoa de Clarice é tão imediato como inexplicável. A sua arte é uma arte que nos faz desejar conhecer a mulher; e ela é uma mulher que nos faz querer conhecer a sua arte. Este livro fornece uma visão de ambas.”

Fica evidente nos relatos – alguns inesquecíveis para quem os leu pela primeira vez e sempre retorna a eles: “Devaneio e embriaguez duma rapariga”, “Uma galinha”, “Feliz aniversário”, “A menor mulher do mundo”, “O búfalo”, “A legião estrangeira” – o perfeito domínio da narrativa curta. Alguns críticos se julgaram incompetentes para analisar a autora, e outros, mais obtusos, duvidaram do que aquilo que liam fosse literatura. Mas alguém discorda que, para inventar, há de que se conhecer o básico? No conto tradicional, uma história secreta se revela no clímax ou mesmo no truque da reviravolta da última linha. Em Clarice, repare em seus finais: muitas vezes a alma da personagem, a qual foi se desnudando no processo da escrita, resume-se (ou implode-se) numa única frase.

“Amor” é um conto típico – e genial – de Clarice Lispector. Entre tantos, é mais um em que o cenário é o Rio de Janeiro. Ana, casada, com filhos, tem um troço dentro do bonde, grita, deixa cair o embrulho de ovos, ao ver um cego. Mas não um cego como outros: aquele mascava chicletes parado perto do ponto. É o início de uma jornada interior de terror gótico. A personagem salta do bonde e entra pela alameda central do Jardim Botânico, entre as palmeiras: “A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.”

Que os leitores sejam bem vindos ao paraíso de Clarice.

Texto de Alvaro Costa e Silva, jornalista.

Contos / Ficção / Literatura Brasileira

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