A primeira cena desse romance é um banquete nos jardins da casa do general cartaginês Amílcar Barca, para celebrar o aniversário da batalha de Monte Érice. É ali, durante o festim, que o mercenário líbio Mâthos avista Salammbô, filha do general e sacerdotisa de Tanit, a deusa da Lua e protetora de Cartago. Salammbô não sairá da memória do soldado, que no entanto será um dos líderes da revolta dos mercenários contra Amílcar, depois que este reconhece não ter recursos para pagar o soldo devido aos estrangeiros que lutaram sob seu comando contra os romanos.
Obcecado pela ideia de voltar a encontrá-la, Mâthos decide roubar um véu sagrado dos aposentos de Salammbô, na companhia de Espêndio, seu braço direito. A disputa pela posse do objeto sagrado e pelo coração de sua dona vão se misturar aos embates em campo de batalha.
Salammbô foi o romance que Gustave Flaubert (1821-1880) escreveu imediatamente depois do abalo estético e moral provocado por Madame Bovary (1856). Do retrato realista de uma mulher insatisfeita na província francesa no século XIX, o escritor saltou para uma aventura épica ambientada no norte da África no século III a.C., durante as primeiras guerras púnicas, em que se confrontaram romanos e cartagineses.
Flaubert afirmou ter, durante cinco anos, lido e anotado mais de 200 livros de história para escrever o romance. Além disso, passou dois meses em viagem pela Tunísia – onde fica Cartago, o epicentro do enredo de Salammbô. Ao ser lançado, em 1862, o romance provocou o esperado desconcerto, originou alguma polêmica com historiadores e conquistou leitores que talvez nem conhecessem Madame Bovary. Como escreve no posfácio desta edição o professor de literatura Samuel Titan Jr., o próprio Flaubert contribuiu para a posição de Salammbô como uma “peça à parte de sua obra”. Ele queria mudar radicalmente de assunto depois do estrondo de Bovary, que o levou à Justiça sob acusação de imoralidade.
O escritor dizia amar a história “loucamente”, e em Salammbô ficam evidentes o gosto e a dedicação com que descreve batalhas, paisagens, animais, indumentária, comidas, utensílios, hábitos e ritos pagãos, com vasta riqueza vocabular – reproduzida na nova tradução feita por Ivone Benedetti. Entre suas leituras, Flaubert tomou como base factual o relato do historiador grego Políbio, escrito no século I a.C., inserindo no enredo personagens e episódios fictícios. Amílcar é presença notória nos livros de história, mas a própria Salammbô nunca existiu. Já Aníbal, o filho verdadeiro de Amílcar e tão célebre quanto ele, participa da trama quando ainda criança, num episódio comovente. Flaubert reveste de cores fortes o material histórico, e o romance todo transpira um exotismo que evoca a Salomé bíblica e os contos das Mil e uma noites.