Marinho 03/08/2015
Você, quantos são você?
“Quem somos?” é uma pergunta tão inerente à capacidade de autoconsciência do homem que guia o direcionamento da filosofia desde o seu princípio. Em uma obra densa, que é menos um romance que um monólogo metafísico, Luigi Pirandello modifica essa questão básica: transforma-a em “Quantos somos?” e, a partir dela, tece um discurso sobre a complexidade do espírito, a dicotomia entre ser algo e parecer algo, e o jogo de aparências sociais que suprime a existência de tal complexidade.
É possível traçar um paralelo interessante entre esse livro e outro com igual poder de visão interior: “A Paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector. Em ambos os livros, um acontecimento trivial (lá, uma barata em um armário; aqui, a percepção de um defeito congênito) são responsáveis por desdobrar toda uma série de dúvidas e questionamentos psíquicos, em um momento único de inspiração no qual o personagem “se percebe” como ser pensante. Mas enquanto na obra de Clarice essa “viagem” interna é essencialmente a nível de indivíduo, Pirandello aborda também as consequências que tal existência de “várias pessoas em uma” implica no âmbito social.
Segundo ele (através da voz do protagonista, Vitangelo Moscarda), não é possível descrever com exatidão a persona que habita um corpo físico, pois a alma constitui-se de um amplo universo psíquico; um livro com várias páginas, sendo que cada uma corresponde a um traço da personalidade. E tais páginas não são lidas na totalidade por aquela pessoa no qual o indivíduo interage, sendo portanto impossível para o alheio conhecer este em sua totalidade, sendo que nem o próprio indivíduo se conhece. Em outras palavras, o ser humano possui uma enorme capacidade, imanente e inconsciente, de metamorforsear-se e moldar-se às pessoas e às circunstâncias ao seu redor, tornando-se assim uma constante “imagem” do que realmente é. Se para A você é X, para B você pode ser Y. O que realmente acontece é que você é, ao mesmo tempo, X e Y, mas A ou B só conseguem ver um lado seu, aquele lado que eles optam, também inconscientemente, para que se torne o seu característico.
Justamente por ser um atributo, quase sempre, involutário, a ação têm o seu início quando Moscarda percebe a dimensão do valor social de tal fato. Afinal, em um só, quantos homens existem? O homem que está aqui, agora, pode não ser o mesmo que estará neste mesmo corpo daqui a alguns segundos. O simples ganho de um conhecimento já pode ser responsável por modificar o pensamento e, por isso, transformar o homem. O homem do presente nunca é o mesmo homem do passado. Podem existir (e existem) vários ids coexistindo, como se o corpo fosse o condomínio de centenas de almas, sem nunca se ter a certeza exata de qual delas está assumindo o corpo físico em determinado momento. E aí somos levados à questão cuja resposta intitula o livro: “Quantos somos?” Podemos ser dez, cem, mil, cem mil, dentro de uma só unidade. Ou de fato “não somos”. Não existimos como um, mas sim como vários, o que leva a crer que nós (o eu) , como cremos piamente existir como únicos, não existe. Somos “um, nenhum ou cem mil”. As três respostas estão corretas.
E, se já é bastante penoso para alguém ter que lidar com essa apresentação multifacetada do ser, em batalhas de ‘”si contra si mesmo”, as limitações impostas pela vida em sociedade, que exige um comportamento ereto e contínuo, são um contraponto à existência de múltiplas personalidades, pois o homem responde por suas ações como um só, abstendo-se das inconstâncias de pensamentos. A vida social, portanto, segundo o autor, torna-se um desafio, pois é preciso a todo momento saber lidar com as escolhas, e escolher de um modo unitário e moral, condizente com a conduta precedente do indivíduo. Qualquer passo fora dessa linha pode automaticamente ser entendido como loucura. Deve-se escolher as máscaras para usar, vestindo o espírito o máximo possível, e deixar com que enxerguem apenas a ponta do iceberg interior, em nome de uma rígida estrutura indissiocrática.
Como Pirandello afirmou, ele não é escritor de farsas, como a desconstrução social e o bom humor da obra podem até sugerir, mas sim de tragédias. A estrutura social é bastante firme; questionamentos e desalinhos com a maneira comumente unidimensional de entender o caráter não serão bem quistos. A partir do momento que o homem ganha a consciência de sua multiplicidade, ele está fadado a viver em uma “prisão dentro de si”, com correntes invisíveis atadas pela vida em conjunto de não se expressar tudo aquilo que ele tem vontade ou poderia vir a se tornar. A fuga da materialidade, a necessidade de comunhão com a natureza, a recusa em se permitir viver em tal estado de aparências que mais lhe parece uma bufonaria, tudo isso é facilmente compreendido do ponto de vista ontológico; mas a sociedade é, essencialmente, ôntica, e tal conduta é concluída como insanidade.
Ao permitir uma vasta abertura para o leitor olhar tanto “para dentro de si mesmo” quanto “para o mundo ao redor, “Um, Nenhum e Cem Mil” torna-se assim uma importante obra da literatura moderna. Ao obrigar a quem o ler tentar reconhecer quem realmente representa aquela imagem que aparece no espelho, pode-se constituir tanto,a depender do curso de tais reflexões, em objeto tanto de fixação das correntes quanto de libertação.