Isa Beneti 12/10/2020
Morte como tema regional, universal e como crítica social
Nesse curto Auto composto por redondilhas, João Cabral de Melo Neto consegue criar uma personagem que, ao mesmo tempo que realiza reflexões existenciais profundas sobre sua situação específica de retirante no sertão, também simboliza uma parte abrangente da população brasileira e mundial. Ou seja, por meio da circunstância regional de Severino, o autor consegue abordar temas universais, tal como a morte, fazendo com que nós, leitores, não apenas sintamos empatia pelo protagonista, mas também nos reconheçamos nessa personagem: é um perfeito exemplo de regionalismo universal. Todo esse equilíbrio entre regionalismo e universalidade é feito de modo racional e objetivo- duas características que marcam a escrita de João Cabral (o "poeta engenheiro")- evitando qualquer tipo de sentimentalismo e trazendo, de maneira natural e sutil, diversas críticas sociais relacionadas à condição de vida dos sertanejos (ou melhor, dos Severinos).
Logo na introdução do Auto, em que o eu lírico se apresenta aos leitores, a ideia de universalidade fica bem explícita por meio de uma "brincadeira" sobre a existência de vários outros "Severinos filhos de Maria esposas do finado Zacarias". Isso deixa claro como o narrador nada mais é do que uma metonímia que representa um grupo muito maior de pessoas: os Severinos retirantes do Sertão.
Isso, de certa forma, tira um pouco da individualidade do eu lírico e coloca-o como "mais uma" entre as muitas outras sofridas vidas Severinas. No entanto, isso não implica na formação de uma personagem plana, visto que as reflexões e contradições existenciais da obra demonstram que o narrador possui, na realidade, profunda complexidade. Afinal, nota-se, ao longo desse bem elaborado texto, o declínio do otimismo do eu lírico em relação à suas andanças: ele abandonara a Serra da Costela em direção a Recife com esperança de prolongar sua expectativa de vida (que, como ele mesmo diz na introdução, não passa muito além dos 30 para os Severinos).
Contudo, o que encontra no caminho é apenas morte: ao longo dos 18 quadros o eu lírico se depara com 3 mortes Severinas (primeiro encontra um corpo morto por bala perdida sendo levado para o cemitério, depois escuta um velório de um Severino e depois assiste a um enterro de um Severino que supostamente lutava por causas sociais), além de muitas outras indicações (como quando procura emprego numa cidade e descobre que todas as profissões eram voltadas para a morte de Severinos- há aí uma forte reificação dos Severinos, como se fossem meras fontes de renda desses profissionais) que deixavam claro como a vida não é nada fácil no sertão, nem na "terra macia" da Zona da Mata, e muito menos nos mangues do litoral- toda vida Severina é sofrida.
Influenciado por um diálogo (em que também há reificação dos retirantes: eles não passam de meros miseráveis que incessantemente morrem e são enterrados- melhor seria se eles se matassem afogados, pois assim pelo menos evitaram cutos de enterro) entre dois coveiros de Recife que destrói suas útimas esperanças de sobreviver no litoral, o eu lírico começa a questionar se essa vida Severina realmente vale apena ser vivida e passa a ponderar jogar-se da "ponte da vida". Severino faz realiza esse questionamento a José (referência ao pai de Jesus), e aí começa uma das conversas mais belas de todo o texto, pois nela José desenvolve a metáfora de uma "vida paga a retalhos" como representação da pessoas que, assim como os Severinos, lutam diariamente por sua sobrevivência. Em oposição ao pagamento em retalhos, há o sonho de Severino: viver uma vida comprada em grandes partidas. José, entretanto, destaca um fato importante: em ambos os tipos de pagamento, obtem-se o mesmo produto- a vida. Mesmo assim, Severino não se convencido a respeito do valor da vida Severina.
Milagrosamente (literalmente), nesse exato momento José é avisado sobre o nascimento de seu filho, também Severino. Assim, os últimos quardros da peça são referências diretas ao nascimento de Cristo (incluindo a vinda de pessoas que, assim como os magos, dão presentes simples- por isso o nome Auto de Natal Pernambucano), representando, portanto, o nascimento de uma nova esperança não apenas para o eu lírico (dando fim aos seus questionamentos suicidas), mas também para toda comunidade local. Afinal, as previsões feitas pels ciganas que visitaram o local de nascimento eram de que essa criança faria parte de uma realidade completamente diferente daquela: ele teria um futuro como um operário de fábrica- suas mãos não mais ficariam pretas de lama do manguezal, mas sim de graxa.
Dessa maneira, o tom pessimista do Auto subitamente muda com o milagre do nascimento Severino, que traz uma nova esperança e uma nova perspectiva a todos nós (leitores incluídos).