Mr. Matos 14/07/2021
um auto sobre como se vive e morre no pais dos tristes trópicos
Nos últimos dias estava um pouco enfadado, a leitura não parecia muito produtiva, talvez acometido pela assim chamada "ressaca literária", nessa horas é sempre bom ter a mão um bom livro de poesia. A poesia é fundamental pelo motivo de que ela extrapola o sentido ordinário dos usos da linguagem, para além das funções descritivas, declaratórias a poesia atinge uma função criativa, como diria Otto Carpeaux a construção poética é capaz de "criar mundos" se você pensar nos Salmos de Davi, a Ilíada de Homero, Eneida de Virgílio, A divina comedia de Dante, ou o Fausto de Goethe. As construções poéticas são capazes de "elaborar" as condições de possibilidade da experiência de uma época, de uma visão de mundo do hebreu, passando pelo mundo greco-latino, do homem medieval até o burguês da era romântica. Quem possuiu uma certa familiaridade com obras de filosofia da linguagem o quilate de por exemplo o tratado "sobre a linguagem em geral e a linguagem dos homens" de um Walter Benjamin reconhece de longe o "poder" de um texto como esse:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.
E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
João 1:1-5
Aqui o evangelista ao falar em Verbo, fala do Logos do principio ordenador da realidade que condensa a própria criação, a experiência de mundo que é possível e também passível de entendimento.
Nesse sentido João Cabral de Melo Neto é um dos poetas que possui a capacidade de universalizar a experiência do homem nordestino e a eleva a universalidade genérica da humanidade, seguindo a lição de Tolstoy "se queres ser universal, canta a tua vila". João Cabral canta o Capiberibe, Canta o Recife, Canta o Pernambuco e o Brasil, Canta sobre a vida e morte severina neste vale de lagrimas. No poema O RIO, o próprio Capiberibe ganha voz ao contar o itinerário da sua viagem até o Recife onde desagua no Mar o "Cemitério dos Rios" e no seu caminho nos da conta da beleza natural (e da sua hostilidade), e o rio canta a miséria humana agravada muitas vezes pela própria ação humana.
Mas na Usina que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.
Na Vila da Usina
é que fui descobrir
que as canas expulsaram
das ribanceiras e vazantes;
e que essa gente mesma
na boca da Usina são os dentes
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente;
que mastigam a cana
que mastigou anteriormente
as moendas dos engenhos
que mastigavam antes outra gente;
que nessa gente mesma,
nos dentes fracos que ela arrenda,
as moendas estrangeiras
sua força melhor assentam.
Por esta grande usina
olhando com cuidado eu vou,
que esta foi a usina
que toda esta Mata dominou.
Numa usina se aprende
como a carne mastiga o osso,
se aprende como as mãos
amassam a pedra, o caroço;
numa usina se assiste
à vitória maior e pior,
que é a de pedra dura
furada pelo suor.
João Cabral em seu morte e vida severina, nos explica como se vive e como se morre, em um pais como o Brasil
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes do trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia.
Cabral nos ajuda a pensar sobre o horror do genocídio diário que hoje se vive, pela lavra do protofascista Jair Bolsonaro com a lavra dos seus cumplices no fisiologismo oligárquico nacional representado na desprezível figura do Sr. Arthur Lira, do decadente STF quem não para de nos surpreender com a sua incurável covardia, e claro não se pode esquecer delas, das assim chamadas Forças Armadas que exigem o respeito por todas as vezes que massacrou o próprio povo quando este ousou querer um pouco mais do que migalhas, o exercito sempre vai estar la para garantir a morte se não "de fraqueza e de doença/ é que a morte severina/ataca em qualquer idade,/e até gente não nascida." a morte pelo canto da "ave-bala" pois aqui:
sempre há uma bala voando
desocupada.
Infelizmente não há como transcrever todo o poema, só posso recomendar que seja lido por todos. Cabral no ensina, antecipando, todas discussões contemporâneas sobre A Bi politica do Homo saccer que Giorgio Agamben joga para a questão dos mecanismo da exceção para compreender o horror do holocausto e a politica da produção da morte, dos processos de desumanização e etc. O que para Agamben nos mostra em seus livros sobre a exceção, Cabral nos ensina que a "vida matável" é a nossa regra, o horror do assassinato em massa que o povo brasileiro vive hoje nada mais é do que a generalização da logica da morte severina que antes era imposta apenas para O retirante, para o preto e para o pobre, hoje a morte para o máximo de gente possível é a politica oficial do governo, mas é claro que não se esquece de velhos hábitos do dia para a noite, a opção preferencial pela morte continua sendo para os pobres Severinos.
Porém nem tudo é tragédia, O nosso poeta engenheiro e diplomata nos legou uma reflexão sobre a inspiração para a criação poética, "A faca só lâmina" que corta o poeta por dentro como se fosse o seu próprio esqueleto, é um incomodo que o impele a escrever e a Cantar o que vê.
Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no musculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lamina azulada;
assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte da vossa anatomia;
qual uma faca intima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de um homem que se ferisse
contra seus próprios ossos. p.139-140
De volta essa faca,
amiga ou inimiga, que mais condessa o homem
quanto mais o mastiga;
de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;
da imagem em que mais
me detive, a da lamina,
porque de todas elas
certamente a mais ávida;
pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
àquela de um relogio
picando sob a carne
e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada
e dai à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem
e afinal á presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,
por fim à realidade,
prima e tão violenta
que ao tentar aprende-la
toda imagem rebenta. p.152-153
Aqui Cabral parece apontar para talvez para os limites da poesia o que lembram o dito sintético atribuído a Wittgenstein em suas investigações sobre a possibilidade da linguagem representar algo da realidade, "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo", se a poesia exerce uma função cultural relevante para as nossas configurações do que entendemos como o "nosso mundo", ela encontra seus limites nesse próprio mundo, e aqui Cabral aponta que por mais horrível que seja a realidade brasileira, que "rebenta" qualquer imagem que se possa desta realidade fazer, contudo, Cabral não é um niilista em sua própria obra ele nos dá uma dica de onde procurar por uma resposta, voltemos ao final de "morte e vida severina"
Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil entender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que se vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-lá desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fabrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-lá brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina. p.132-133
Mesmo severina é somente na vida, onde ainda é possível algo como a esperança, a vita activa ou seja onde existe a práxis como o agir propriamente humano, a práxis transformadora que depõe a realidade como ela é, e nos permite vislumbrar o nascimento de um "novo mundo", a atenção que o poeta da a vida é um convite que o poeta nos faz a encher de esperança nossos combalidos corações, é o chamado para a nossa explosão como um povo Severino para viver uma vida para além da severina.