Erick 23/03/2021sobre a complexidade humana O psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) é um dos grandes estudiosos da alma humana no século XX. Primeiramente discípulo de Freud, no alvorecer da psicanálise, logo se distanciou dele para penetrar nos segredos da psique a partir de uma perspectiva analítica.
Diferente de Freud, que era médico neurologista, Jung era psiquiatra, o que lhe concedia outra visão dos fenômenos psíquicos. O contato cotidiano com os esquizofrênicos, doença até então caracterizada como uma psicose, o distanciava das formulações de Freud acerca do sofrimento humano, que tratava mais de neuróticos da Viena dos fins do século XIX. A diferença entre a neurose e a psicose reside na distância entre o perturbado e o doente. Entretanto, o que os aproxima é o inegável sofrimento que ambos padecem.
Para Jung, toda perturbação mental que acomete os seres humanos tem como origem uma cisão psíquica entre a consciência e a inconsciência: os conteúdos psíquicos do inconsciente teimam em querer irromper. Tal vontade não controlamos, uma vez que só controlamos aquilo de que temos consciência. O sofrimento, portanto, reside nessa nossa incapacidade de tornar consciente esses conteúdos que nos assombram.
Uma das formas que podemos, segundo Jung, combater o sofrimento psíquico, é nos conscientizarmos dos conteúdos do inconsciente – e isso pode ser concretizado de diversos modos. Aqui, nesse conceito, temos a razão principal do afastamento da psicologia analítica de Jung da psicanálise freudiana. Para Freud, o inconsciente era traduzido pela análise em termos de conflitos de ordem familiar - o Édipo -, de onde se originam os traumas, as alegorias sexuais e os complexos que nos colocam numa encruzilhada de sofrimento e dor psíquica. O inconsciente freudiano possui um aspecto transpessoal, uma vez que ele é vivido pelo indivíduo, que por sua vez está inserido numa comunidade de indivíduos que também têm um inconsciente, e cujos complexos e traumas se interconectam compondo uma tensa rede humana de interações. Desse modo, o inconsciente é estruturado pelos sintomas, que podem se expressar ora por doenças como a neurose, ora como psicopatologias que não necessariamente atrapalham a nossa vida, como os lapsos, os chistes e os sonhos.
Para Jung, entretanto, essa transpessoalidade pode ser concebido como uma oposição tensa: por um lado, o inconsciente pessoal, onde residem os traumas, complexos e sofrimentos relacionados ao ego (a própria estrutura do ego para Jung constitui um complexo); de outro, o inconsciente coletivo, que nos conecta com a história da humanidade enquanto seres humanos que expressam uma condição vital, onde residem os arquétipos. É a conscientização destes arquétipos que nos possibilita a superação do sofrimento, ou seja, a passagem pelo inferno que somos nós que se torna via de acesso ao paraíso que também nos constitui.
Isso significa que cada indivíduo é muitos (unidade infinitiva), todo ser humano é complexo e cada um possui um caminho chamado processo de individuação onde tornamos consciente os arquétipos que estão constelados em nosso inconsciente. Os principais arquétipos junguianos são: A Anima/Animus, a Sombra, a Persona e o Self. Cada qual possui uma função específica na constituição psíquica dos seres e na superação do sofrimento psíquico e na conscientização dos complexos.
O centro da vida egoica é a persona, o aspecto mais externo da nossa personalidade, aquele que será responsável por nossa interação social, profissão e todos os âmbitos relacionados com a objetividade do mundo. Persona, nesse sentido, é a máscara que vestimos para sermos compreendidos pelas demais pessoas, também travestidas por suas devidas máscaras. De fato, Jung compreende as relações humanas, nesse aspecto social das interações sociais, como um grande teatro onde as pessoas fingem ser o que de fato não são (aqui é central a noção de representação, que Jung busca explicitamente em Schopenhauer). Existe um caráter de representação encarnado pelo arquétipo da persona que nos torna visível para a sociedade. Não há problema nenhum em representar um papel social: o problema é não estar consciente de tal representação e identificar-se demasiadamente com a persona, o que nos traz uma série de problemas e, sobretudo, sofrimento psíquico. Um professor, por exemplo, que assume um tom professoral em todas as situações parecerá pedante para uns, e certamente ignorante para outros, uma vez que ninguém sabe tudo.
A contraparte natural da persona é a Anima para os homens e o Animus para as mulheres: se a persona representa a nossa consciência naquilo que temos de objetivo, esse arquétipo Anima/Animus representa a introversão da personalidade, o nosso aspecto inconsciente, e naturalmente oposto à nossa consciência, haja vista a ruptura ontológica que nos constitui. Como já apontamos, para Jung, existe uma cisão primordial na psique humana, uma oposição que nos torna complexos: todo homem possui uma feminilidade oculta, assim como toda mulher possui uma masculinidade oculta. Em termos sociais, poderíamos falar de repressão, já que, como bem apontou Freud, a nossa socialização desde criança se dá através da repressão de conteúdos psíquicos que se escondem no ID: tudo aquilo que não é aceito socialmente é reprimido, o que nos traumatiza e nos torna neuróticos. A Anima/Animus é justamente o arquétipo que comporta essa complexidade que nos torna múltiplos em um só.
O arquétipo da Sombra é a parte profunda de nós mesmos que queremos esconder, que nos envergonha, nos torna baixos, sujos, animalescos, cuja naturalidade nos atemoriza. É muito tranquilizador pensar como Sartre, de que ‘o inferno são os outros’, e ignorarmos que, de fato, o inferno reside nas profundezas de nossa alma: é a solidão que nos horroriza, o medo da exclusão que nos faz submetermo-nos a papéis ridículos. É necessário reconhecer, para superar o sofrimento que nos espreita, que temos um aspecto sombrio que nos esforçamos para esconder. Mais força ainda demanda livrar-se de tais prisões mentais, pois todos temos nossa parte sombria, não devemos nos envergonhar dela, mas assumi-la como nossa, trabalhá-la cotidianamente para que ela só se manifeste quando autorizarmos.
O arquétipo mais importante da psicologia analítica, no entanto, é o Self, o si-mesmo, que Jung considera a nossa parte numinosa, a luz que irradia de todo ser vivo e que nos conecta com todos os outros seres e que ilumina nossas sombras, que nos torna mais que uma mera individualidade com desejos, medos, culpa e afetos mesquinhos, e nos demonstra que a individuação é mais que tornar-se um: é tornar-se quem verdadeiramente é, além de todas as limitações do ego, todas as exigências sociais, toda a dor psíquica. Atingir tal consciência não é nada fácil, pois estamos atolados nas exigências do ego, essa individualidade tão mesquinha que nos restringe a persona, ao mundo objetivo das coisas e relações e que nos impede de ver que há uma possibilidade de superação dessas limitações. Essa noção de si-mesmo certamente está associada ao atma da filosofia indiana e Jung não cansa de enfatizar tal gênese.
A aposta junguiana é justamente a conjunção dos opostos, da consciência com a inconsciência, a superação desse conflito primordial que aparece como insuperável, mas que somente nos aprisiona. O acesso a esse arquétipo do Self constitui o que Jung denomina processo de individuação que, no entanto, foge a todo esquematismo, o que significa que cada pessoa tem um processo que é seu e de mais ninguém: ser singular, nessa perspectiva, é uma conquista, não um pressuposto. De fato, o pressuposto é a psicologia de massas, a vivência sob o sofrimento e a tentativa de mascarar nosso sofrimento com aparentes conquistas sociais que nos tornam bem-vistos, pessoas de sucesso. A individuação opõe-se a psicologia de massas e faz o indivíduo perceber que não precisa se submeter a situações que brutalizem sua personalidade; torna-o, efetivamente, mais livre.
Esses quatro arquétipos dos quais falamos brevemente constituem o cerne da psicologia analítica e nos comprovam que somos mais complexos do que gostaríamos de admitir: somos múltiplos quando pensamos ser uma unidade. Além dessa complexidade arquetípica constelada pelo nosso inconsciente, para compreendermos o sofrimento psíquico no pensamento de Jung, devemos levar em consideração a tipologia – o que ele trabalha mais extensivamente em outro livro “Tipos psicológicos” -, ou seja, como o indivíduo lida com sua energia, o que Jung chama de libido.