Marcello M. 23/11/2010
Conheci Cortázar da forma que é comum conhecermos a maioria dos escritores que passam a nos acompanhar por um longo tempo: uma namorada me apresentou. Ela sempre contava de um livro que eram vários livros, que podia ser lido de diversas formas, que pulava de um capítulo a outro de diversas formas diferente e o romance ainda era completo. Assim li Jogo de Amarelinha pela primeira vez. A princípio quis lê-lo de uma forma padrão, pois eu era daqueles que apertava a pasta dentifrícia na parte debaixo já imaginando as dificuldades que encontraria para escovar os dentes no final caso fizesse o contrário. Cortázar não funciona dessa forma. Abandonei a obra antes da metade. Não que não me atraísse ou que a escritura do castelhano não me completasse, mas sentia uma espécie de medo daquilo que se apresentava nas páginas e a leitura não se apresentava de forma tão fluída para que conseguisse ultrapassar essa barreira. Orgulhava-me da minha edição em capa dura que comprara por uma pechincha, mas a deixava empoeirando na estante.
O livro me chamava diariamente da estante, mas eu dava de ombros e fingia não escutar. Um ano depois não pude mais deixá-lo de lado. Atendi ao seu apelo. Desta vez fui pulando a sapata em direção ao céu. Se cheguei ao céu, não sei; mas encontrei-me pela terra e pelas linhas pulando de quadrado em quadrado. Apaixonei-me e odiei a Maga, as ruas de Paris e os torrões de açúcar que rolavam pelo chão. O acaso da amarelinha me trouxe uma nova leitura da obra. Assim conheci de fato Cortázar. Não o deixaria de lado tão facilmente.
Engraçado que sempre ao tentar ler alguma obra de Cortázar não conseguia concluí-la. Sempre a deixava pela metade e a retomaria depois. Com Histórias de Cronópios e Famas ocorreu o mesmo. Chegou-me as mãos uma edição em espanhol da obra. Comecei muito impressionado com o Manual de Instruções, mas não consegui alcançar a grandiosidade da obra. Menti pra mim mesmo que o espanhol do texto era muito difícil e assim justifiquei minha preguiça.
Novamente um ano se passou e viajei para Buenos Aires. Ao ler o nome da rua em que caminhava lembrei no ato: “Somos muitos e moramos na Rua Humboldt”. Senti-me o Cortázar caminhando por aquelas ruas. Procurava a tal casa com o jardim na frente três degraus acima da calçada, inutilmente. Corri até a rua dos sebos e encontrei uma edição muito bonita e paguei uma pechincha em pesos argentinos. Devorei-o no primeiro café que encontrei. Não sei se era o contato com a cultura ou se a minha disposição havia aumentado consideravelmente, mas o espanhol correu aos meus olhos como se fosse meu idioma de origem. Quis ser cronópio instantaneamente, mas sabia ser fama maior parte do tempo. Entristeci-me. Aqueles pequenos seres amarelos. Ao chegar ao Brasil não resisti e comprei também a edição em português da Civilização Brasileira, que além de ter um acabamento incrível, apresenta uma tradução excelente. Devorei novamente e lágrimas rolavam dos olhos como se eu fosse cronópio. Durou apenas três minutos e assuei o nariz. Choro acabado.
Com o passar do tempo fui encontrando-me novamente com o castelhano por acaso ou por procurar de fato. Não reclamava. Primeiro foram Os Prêmios e as mil interpretações de um mesmo acontecimento narradas com maestria, Volta ao Dia em Oitenta Mundos me mostrava que ser crítico poderia ser algo extremamente divertido e literário e, por fim, o Octaedro me trazia de volta o Cortázar que mais admirava: o contista.
Saía de casa, atrasado como de costume, em direção ao trabalho e o porteiro me chama de longe: “Chegou uma encomenda pra ti”. Pensei em apanhar na volta, mas a curiosidade falou mais alto. Era Papéis Inesperados, a obra póstuma de Cortázar. Com os dentes arranquei a embalagem e os olhos brilhavam ao ter nas mãos mais de quatrocentas páginas de beleza me aguardando. Não resisti. Comecei a folhá-lo no trajeto de ônibus ao trabalho, dei uma passada de olhos no prólogo com intenção de pulá-lo para logo chegar às palavras do Cortázar, mas foi impossível. Caí na armadilha. A curiosidade foi maior. Precisava saber da busca dos papéis e dos inéditos do escritor. Voltando a consciência percebi ter perdido o ponto de ônibus absorto nos papéis inesperados.
Papéis Inesperados é uma obra póstuma de Julio Cortázar lançada em 2009 na Argentina e chegando ao Brasil apenas um ano depois pela Civilização Brasileira. O livro reúne uma série de textos inéditos do escritor e alguns publicados em jornais e periódicos escritos em espanhol, francês e até em português, mas que nunca haviam sido reunidos em obra. A escolha dos textos foi feita por Aurora Bernárdez, esposa de Cortázar e por Carlos Álvarez Garriga, editor fã de Cortázar. A tradução ficou por conta de Ari Roitman e Paulina Wacht, os quais já haviam traduzido outros textos de Cortázar para o português. O livro conta também com três contos inéditos que deveriam compor Histórias de Cronópios e Famas, mas que por algum motivo, ficaram de fora da obra. O livro se divide em capítulos conforme a temática e o formato da narrativa.
A adaga e a flor-de-lis. Nota para um memorial é o texto que abre a obra. Exemplo claro do estilo de narrativa fantástica de Cortázar. O texto narra com maestria um assassinato no ducado. Com impressões que nos remetem ao período medieval, mas, também, com passagens que dão tons de modernidade nos perdemos e adentramos esta narrativa atemporal. Os gatos é quase uma novela. História de um casal de primos que são criados como irmão e crescem juntos. Esse conto mostra claramente o lado descritivo e psicológico de Cortázar ao narrar o crescimento dos primos na mesma casa, as crises que se passam nas diversas etapas até a fase adulta e os conflitos familiares e sentimentais. Ciao, Verona foi para mim um baque. Assim como Histórias de Cronópios e Famas, eu não o conseguia ler sem dirigir a atenção devida. E dessa forma o li e re-li por diversas vezes e a cada nova leitura caía em novo êxtase. Ciao, Verona é uma carta pouco lida encontrada em um hotel após o suicídio do destinatário. A doçura e a dor presentes em Jogo de Amarelinha estão apresentadas de forma exponencial aqui. O capítulo intitulado Histórias de Cronópios apresenta os três textos deixados de fora da obra. Aqui está todo o estilo cortazariano ao tratar de cronópios. Devo admitir que meu preferido dos três é Almoços. São fantátiscos. De um tal de Lucas é o capítulo que mostra o humor de Cortázar e sua destreza em falar sobre banalidades e visões imaginativas. Ao longo do livro temos textos em que Cortázar comenta suas próprias obras e textos que apresentam auto-entrevistas. Um capítulo chamado Poemas fecha a obra e nos mostra um Cortázar, até então, pouco conhecido. Tratando de vários temas, o autor monta poemas em um estilo despojado, altamente sentimental e profundo.
O livro é, sem dúvida, um grande achado. Os Papéis Inesperados me caíram de uma forma inesperada e me encantaram de uma forma ainda maior do que o esperado mesmo se tratando de Cortázar. A obra é vasta e nos mostra diversas facetas do consagrado autor argentino. O acabamento é impecável e a seleção de textos é maravilhosa. A tristeza fica em não saber mais o que esperar dos achados do autor, mas certamente o livro é completo e preserva a memória do autor.